Eu, que o único contacto visual que tinha tido era aquela pobre coitada águia, escravizada para dar voltas a um campo de futebol, achicada por uma multidão bárbara exultante, e os corvos, nas fotografias e heráldicas da Câmara, que emblemam a minha cidade e das poucas vezes que visitei o castelo de São Jorge.
Já mais tardiamente apareceu um melro
na minha vida (e a revolução que ele fez!). Um majestoso melro, que nesses fins
de dia cinzentos, pousava no telhado do prédio solitário na minha paisagem
urbana, e eu, sentado na secretária, o recebia da minha janela do quarto, no
meu prédio solitário e assustado. Eu tinha uma máscara incómoda, ele não, era
livre. Ciumento eu de ele o ser.
Agora, que sou quase livre,
continuando sem asas (e estou mesmo em querer que nunca as irei ter), mas
esvoaçando imitando-as, na minha cama de rede brasileira, numa tarde amena de
outubro, pensando com leviandade, nas coisas minhas da existência, e não é que
um passarito lindíssimo de peito acobreado, pousou, olhando-me ou parecia,
fazendo cerimónias de ir debicar esse repasto do meu alimentador?
Fazendo-se ele difícil, o que não se
pode dizer de Darwin que sendo cão, se pôs doido porque julga que pode ser ave,
só para degustar esse petisco que comprei na cooperativa com a vontade de me
apaziguar com a natureza, que tenho tratado com indelicadeza.
Confesso que já me passou pela cabeça
ter ciúmes de não ser pássaro, só para poder agora debicar essa delicadeza.
O Darwin não compreende esta minha
indecisão, já que ele pensa que pode ser tudo. Eu, bamboleando e fazendo
crónica deste acontecimento, reanimei esses tempos em que o mundo parou e
alguns, tão ingénuos, pensaram que a humanidade iria para melhor, que o mundo
ia ser diferente.
E foi. Para Pior.
Sendo assim ,devo na minha intimidade
que ninguém me ouve nem vê, excepto o Darwin, que da boca dele não sai
denúncia, dividir o petisco pelos dois, ou não, que o mundo está mesmo a finar e é melhor
fazermos de bons samaritanos e eu e o Darwin ganharmos uns créditos para o
amanhã, em que seremos reduzidos a pó e na melhor das hipóteses imaginadas, o
nosso pó pode causar umas belas de umas irritações respiratórias, na
casualidade muito pouco provável de voltar a haver humanos que venham a ter
problemas respiratórios.
Tudo isto para dizer que estou muito
contente com a decisão de comprar um “stick” tipo chupa-chupa para pássaros e
ter tido essa primeira visita exploratória desse lindíssimo pequenino pássaro
de peito acobreado. O Darwin é que não para de dar ao rabo a ver se voa o
malandro.

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