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APOCALIPSE DAS PALAVRAS

  

Caos (latim chaos, -i) Confusão de todos os elementos antes de se formar o mundo. Fig. Grande desordem, confusão.


O dia do Apocalipse das Palavras No momento certo que não deixou para este relato a confirmação exacta da hora marcada a que isto aconteceu, deu-se o ataque às cidades. Falácias escritas, fake news, conspirações e propaganda, manipulações, e mensagens subliminares, políticas de alienação pela palavra, foram bombardeadas indiscriminadamente sobre as cidades e os seus habitantes. Não escolheram alvos. Choveram frases corrosivas e ácidas, em cirílico, em mandarim, em hindu, em alemão, em inglês, nas línguas vivas e mortas, todas. Até as línguas inventadas, os esperantos, outras com outros nomes, Todas as línguas e idiomas que os homens falam foram empregues no dia do Juízo. Nesse dia a palavra não foi o Verbo. Um poder nunca visto. Num só dia, aquele, foram ditas em todas as conjugações de palavras, as maiores asneiras e vernáculos. Anátemas, impropérios, difamações, falsos testemunhos, equívocos, mensagens dúbias, raivosas, tinhosas, inoportunas. Rajadas ininterruptas de expressões de escárnio e maldizer deitaram ao chão milhares e milhares de incautos, que estonteados não sabiam o que lhes estava a acontecer. As demagogias lançadas em bombas de fragmentação, cobrem todas as superfícies. Teorias da conspiração, manuais racistas, xenófobos. Granadas com pregos e listas de maus-olhados; discursos retóricos de grandes ditadores da história são atirados em papiros enrolados em mísseis com ogivas de urânio enriquecido. Devia dizer-se “empobrecido”, mas a turba aceita tudo. Relatórios de contas “martelados”, auditorias financeiras falsificadas, actas de assembleias gerais forjadas, foram lançadas sobre as ruas, sobre os canais, os rios ou riachos que banham as grandes cidades. Bombas-robôs, inteligentes o suficiente para causarem grandes danos, ao tocarem no chão, como centopeias histriónicas sensibilizadas pelo calor humano, penetraram em edifícios onde as pessoas se escondiam ou simplesmente estavam às janelas sem entenderem, a assistirem ao rebuliço geral, e dizimaram às centenas. Iam à caça da carne, do calor. Não havia fuga, nem fora nem dentro, só fugindo das cidades e por isso as autoestradas rapidamente entupiram. Mas as pessoas que tentavam fugir não sabiam ao que estavam a fugir. Instalou-se o pânico e quando se instala o caos as pessoas deixam de pensar, ficam erráticas, agem sem saber, agravam ainda mais a sua situação, são capazes de tudo, e seguindo umas atrás das outras, atiram-se para abismos, poços fundíssimos e nem olham antes, nem querem saber, fogem. Os carros parados, as pessoas dentro, sem puderem ir para a frente nem para trás, tornaram-se alvos fáceis. Ainda foi pior, a catástrofe atingiu ainda mais pessoas nas estradas, em tentativa de fuga. Com voos meticulosos e rasantes os bombardeiros lançaram sobre as viaturas uma chuva, uma espécie de sopa de letras como bicos de prego enferrujados, caldo mortífero. Nunca, num só dia, tantas pessoas embruteceram, ficaram imbecis, estupidificaram, porque foi essa a mortandade. Não a de matar os corpos e as almas, mas de as tornar, vivos dormentes, uma turbe, as pessoas transformadas em ovelhas. O inominável mal despiu-se e mostrou sem pudores nem consciência, toda a sua nudez putrefacta e flácida. O poder da palavra foi tão devastador e atómico, que fez soçobrar a humanidade. Quando uma palavra acerta para o bem ou para o mal, num certo ponto central e nevrálgico do coração, o atingido ou experimenta o prazer mais absoluto ou sofre a maior das dores. E foi dessa forma atroz e exangue que desfaleceram os homens, de estarem lúcidos, adormecendo anestesiados para sempre: atingidos em cheio, pelas palavras cortantes dos outros. A ideia que tínhamos do mundo esvaneceu, diluiu-se na acidez das palavras e o pior desta catástrofe global, era não haver cura conhecida. Uma panaceia, um remédio, uma terapêutica. Nem o repouso que tudo cura. Nem o ar do campo, há muito sujo, conspurcado pelos gases tóxicos expelidos pelas fábricas de felicidade artificial humana, as linhas de montagem dos bens de consumo, muito consumo, uma orgia constante de consumo. Uma vez atingidos pelas palavras, os homens não tinham recuperação. Perderam o tino, a compreensão, o entendimento, o pensamento cristalino e belo e perdendo tudo isto, ao mesmo tempo, os homens perdem a graça, tornam-se banais. Antes eram os filhos preferidos dos deuses, agora são a sua maior desilusão. Testemunho de um sobrevivente: «As deflagrações em cadeia “mataram” as pessoas pela asfixia. Num fenómeno de sentido contrário, que só a desenvolvida tecnologia da guerra consegue operar, as palavras ácidas e radioactivas das bombas foram aspiradas pelos homens, em quantidades que não permitiam respirar, fragmentando-se no interior dos corpos. Uma vez instaladas, destruíram a raiz dos pensamentos, as suas estruturas, as ligações sinápticas foram interrompidas. Carcomeram os interiores e os homens ficaram imbecis. Foi devastador. Ninguém estava preparado, não havia máscaras para os proteger de uma intoxicação que não se conhecia o antídoto. Na ânsia da falta de ar, ao quererem respirar, mais eram as palavras letais que entravam nos brônquios e depois invadiam as cavidades, destruindo todos os sistemas. Sendo absolutamente intrusivas as palavras imiscuíam-se por todos os lados, não havendo forma de lhes escapar, nem lugar seguro onde esconder. Esta guerra sem confronto foi a mais destrutiva e rápida da história da humanidade. Não se derramou um pingo de sangue, mas a humanidade soçobrou aos ataques impiedosos dos bombardeiros. As cidades, os seus edifícios, os monumentos, as repartições públicas, as casas dos políticos, as dos banqueiros, ficaram intactas. No entanto, na noite desse dia ou no dia depois dessa noite, uma multidão de seres mortos-vivos, seres sem tino, começaram a andar sem rumo, sem vontade, seguindo-se uns aos outros, aos sabores de impulsos aleatórios e irracionais. Completou-se a domesticação do homem. Algures, onde se forjaram as ideias, se burilaram os planos desses ataques, os mandantes comemoraram com champanhe de boa qualidade. Telefonaram se uns aos outros dando os parabéns, congratulando-se com as vitórias, lançando augúrios- e o mais não se sabe. A partir dai deixou de haver noticias e jornais e telejornais e rádios. A informação tornou-se redundante. Os homens perderam a curiosidade e os mandantes e os tiranos acabaram com a necessidade de escrutínio. Nunca mais houve eleições livres.

 

In O Caderno das Palavras Belas

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