Imaginando o oeste longínquo - o
faroeste -, salpica-nos como um instantâneo, a imagem do “Saloon”, um
local de encontro, bar, lupanar, uma hospedaria e residência penúltima antes da
cova, dos que tinham o azar, ou a aselhice da lentidão, ou falta de acerto, na
pistola pesadíssima que desembainhavam dos coldres pendentes nas ancas, e que chegavam
com um atraso fatal ao momento do tiro, matando os desajeitados e reafirmando a
vida dos que acertavam no momento devido no gatilho.
Esse faroeste é o dos filmes dos
vaqueiros, das terras sem lei, dos índios que tinham os melhores cavalos,
selvagens como eles, os que melhor se vestiam, longas tiaras de penas vistosas,
olhar indomável, mas eram os que perdiam sempre. Parece que existiam para isso
mesmo: perderem ainda mais do que os desajeitados da pistola, que ainda assim
eram brancos e estavam acima na hierarquia das espécies humanas criadas pelos
deuses, e devidamente estratificadas, para não haver mais conversas nem
atropelos de poder.
Em todos os filmes mesmo os da vida
real, tem sempre de haver índios, que são sub-humanos e que se podem dizimar
sem problemas filosófico-religiosos.
Figueiró não fica no Texas. Os
cowboys de aqui andam de carro e as pistolas estão em casa. Os índios, se os há
– já não usam todos os dias as coroas de penas, coloridas, a escorrem pelas
cabeças e os ombros; os xerifes, há por aí alguns, identificados, com termo de
identidade e residência, se bem que continuem a achar que são os senhores disto
tudo, iludidos nos seus sonhos febris de pequenos poderes e famas.
Não sendo, portanto, Figueiró, uma
povoação clássica de Westerns estilo spaguetti ou outros, tem, no
entanto, um salão na imitação perfeita desses locais de uma América recôndita e
com cheiro a antigamente.
Dessa forma despreocupada, pode
discorrer em pensamentos, um transeunte que ao passar veja aquela porta
basculante, vazada a meio para se poder apreciar de fora o ambiente que está
posto dentro, e que vai e vai, até que a lei da inércia, aparentada desta ou
como se chame correctamente, a ponha quieta, na posição de descanso, ou seja,
fechada.
Adega (dos) Passarões e,
desconhece-se a origem do nome, podendo muito bem ser um tributo aos grandes
clientes da casa, passados e presentes, ou então outra significação qualquer e
mesmo nenhuma. É um local que serve refrescos de incidência alcoólica, brancos
e tintos e gaseificados, e petiscos apurados pelo tempo, de geração para
geração, eternos porque percorrem o tempo do passado até ao futuro, apurando e
destilando fragâncias e sabores, numa alquimia permanente, no tempo que for
preciso, Olha-se para eles expostos no balcão e tem-se uma visão da arqueologia
gastronómica, nas iscas que sempre estiveram ali, nos carapauzinhos com
molho de escabeche que vêm desde as auroras dos tempos, do ovo cosido, clássico
e sempre o mesmo, digno das maiores confianças.
E, na grande aventura de os petiscar,
são bons, tão bons, não ficando arrependimentos pela ousadia de os ter
arriscado.
A Dona Etelvina, faz uma feijoada de
se fazer uma vénia ou duas e não se fica por aí, haja vontade e estar no dia
certo.
A Adega dos Passarões é o
estabelecimento público mais privado de Figueiró.
Existem ao dispor quatro cabinas com
porta, onde os confrades podem festejar e brindar as vezes que quiserem e
quanto quiserem que ninguém pode dizer que os viu; onde se pode discutir
política local e compadrios; onde num paganismo bem intencionado se podem fazer
todas as confissões mesmo as mais inconfessáveis; onde se pode namorar, desde
que seja em baixa intensidade, não se escapem sons comprometedores para o
espaço exterior; onde se podem urdir conspirações, disto e daquilo e
daqueloutro.
É verdade, que vistas de fora, todas
em fila, parecem pequenas celas, mas de santas não têm nada, e o os Passarões
nunca foram convento nem têm fé suficiente para os monges descalços ou calçados.
Finalizando todas estas conversas
desencontradas, a Adega dos Passarões é uma instituição de utilidade pública, património
material da nossa comunidade.
Um longo balcão de atendimento, e nas
costas de quem serve, uma nova sala também com um balcão e uma espécie de
contornos de tonéis, em alvenaria a fazerem a parede longitudinal dessa sala.
A partir da abertura que delimita a
sala principal da secundária, não se falará mais, dado o estado muito próprio
de conservação de todos o espaço, que pode ser do gosto pessoal dos
proprietários, e gostos, é como nos gelados, não há dois que se peçam iguais e
todos à sua maneira e sabor são bons para quem os escolhe.
A Adega dos Passarões faz igualmente
parte do roteiro folião figueiroense
(na porta de entrada do nosso Bairro
Alto), sendo ponto de confissão técnica, nas vias-sacras que os penitentes, e
são tantos, fazem diariamente, parando e repetindo o ritual do bota abaixo, com
tanto empenho no movimento do copo que só pode ser uma coisa espiritual.
A Dona Etelvina é uma simpatia e
merece uma vénia, santa que é ela, de aturar cada passarão que só visto! E,
quem não conhece a Adega dos Passarões e, não se inicia no ritual da isca
avinagrada, nunca poderá ser membro de pleno direito da nossa sociedade.
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