Irrompe das entranhas da terra, força bruta, uma mina de águas. Grito de vida, apressado caudal desvairado, atrás da gravidade, vai dar de beber a outro mosteiro, de portas fechadas, restam os fantasmas dos seus habitantes contemplativos.
No pequeno largo onde existe essa
mina, existiu antes um convento de freiras em recolhimento e prece. O tempo é
um carrasco imperdoável. Carne e o espírito esfumam-se, as obras de pedra e
outras têm vidas mais prolongadas. Ficou uma parede com o recorte de janelas e
portas, mas é só uma parede, de um lado e do outro o vazio, o nada, como que a
dizer que tudo é efémero e em poeira se transforma. E isso nada tem de
religioso, espiritual que seja, é uma evidência natural dos sedimentos do
tempo. Nada mais. A alguns, atentos, sintonizados, poe-nos em sentido: a
existência é curta, sejamos decentes, connosco próprios, com os outros, com o
que encontramos nessa natureza tão esplendorosa que não merece aproveitamentos
vãos, merece cuidados e afagos.
No centro geodésico desse largo
pequeno e tímido há um tanque para lavar roupa, alimentado pelas águas da mina.
Um tanque com um telheiro protector.
Muita mácula terá sido lavada por
mãos fortes, muito pecadilho terá sido limpo de nódoas, muita sujidade dos
caminhos ermos e sinuosos, se terá imaculado nos movimentos de sabão e águas e
retorcidos, até advir a confiança da brancura ingénua das coisas primordiais.
Mulheres, lavadeiras a lavar cantando cantigas simples e de refrão repetido,
atirando chistes sobre os moços que as gostavam de namorar, são memórias de
fotografias de um antes que já se apagou. Aqui, neste tanque ainda se lava
roupa, mas já não se canta a despique.
O pequeno largo situa-se no centro
histórico. Histórico pelas poeiras e teias de aranha. Histórias se as houve, já
não se contam, nem se sabem, este coração arritmado da vila tem pouca gente que
as possa contar, é um espaço de casas desfiguradas com a vida a esfarelar-se no
passar dos dias.
Podia estar mais cuidado esse largo.
Podia não ter carros estacionados aos dias como lhes calhou serem estacionados.
Podia ser pintado da sua cor de sangue de touro o telhado metálico da fonte,
agora pintada de ferrugem galopante. Podia ser cortada a erva daninha com mais
regularidade. Cuidados os canteiros. Jovens casais de namorados podiam
sentar-se abeirados da fonte, conversando murmúrios, suspirando futuros e
beijando-se romanticamente; casais menos jovens podiam fazer o mesmo; podia
haver velhos a esfiapar recordações, uns com os outros; podia haver crianças
gritando muito e brincando.
Mas não há nada disso. Há a solidão
das pedras que não sabem falar e não têm nada para dizer.
Acabou esse movimento, se antes o
teve. O largo da fonte das freiras é agora um esconso, umas traseiras de
qualquer coisa. Local desarrumado sem uso nem proveito.
No esquecimento de si, é um dos
lugares mais belos da Vila.
Assim se olhasse com os olhos e as
pessoas tirando da cartola da sua imaginação o redesenhassem um local de
descanso, de conversas amenas, de teatralidades inventadas para distrair as
pessoas e renovarem a vida do lugar. As velas são quase gratuitas, as poesias
são económicas, consomem pouco papel e decoram-se, os cantares podem ser
espontâneos. A cultura não precisa de ser doutoral, para ser credível. Talvez o
contrário a aproxime das pessoas. E também não precisa de ser rasteira e boçal
para angariar mais aderentes. O largo podia ser um teatrinho ao ar livre em
noites amenas.
A Fonte das freiras tem um muro
grande e branco a pedir para ser pintado, quem sabe a contar uma história
visual, e só isso, por patacos, mudaria a disposição e a energia do lugar.
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