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Aqui para nós


Ponderei maduramente se deveria escrever estas palavras e expor o meu pensamento a esta comunidade de Figueiró dos Vinhos, que tão generosamente me recebeu.

São os meus receios e preocupações e considerei um imperativo moral de partilhar com os outros, e que isso possa entreabrir uma porta de reflexão, diálogo e opinião.

Vivemos num país onde a democracia não cedeu lugar à existência do espaço público (esse espaço foi ocupado pelos meios de comunicação onde os comentadores são os mesmos políticos que comentam, numa lógica de circuito fechado), anfiteatro aberto onde os cidadãos, com espírito crítico e pensamento responsável, pudessem desenvolver os seus direitos de cidadania e opinião. Esse espaço inexistente, resume-se ao círculo mínimo dos convívios eventuais nos cafés e nos bares, aos chistes, nas festas das comunidades, mais em jeito de dizer mal por dizer mal, do que o sentido adulto de manifestar e dar a conhecer o pensamento pessoal para se frutificar na conversa, avançando caminhos para o desenvolvimento harmonioso das sociedades.  

A ausência desse espaço é culpa nossa não da democracia (preguiçosos, pouco intervenientes, reverentes, tantos ainda, aos pequenos poderes que oprimem e continuam a assustar os crédulos, uma grande maioria).

Resisti a nada dizer, mas decidi dizer o que penso porque estou convencido que a nossa participação opinativa é a verdadeira prática da democracia.

E decidi também dizer, porque não acredito, nem aceito, as decisões tecnocráticas, as burocracias, as estratégias cristalizadas, os interesses pessoais acima dos de grupo, as éticas de qualidade duvidosa, os arranjinhos comprometidos.

Vivo em Figueiró dos Vinhos e gosto.

Local improvável, tanto mais que vi para cá viver preocupado com o drama de 2017, um desfecho trágico, patético, e uma gestão dos territórios que nos traz até ao dia de hoje e que pode e deve ser discutida entre todos.

Vim, adaptei-me, tomei o gosto, não me vejo noutro lugar, e na medida em que os dias passam e vamos relaxando, fui aceitando com alguma impassibilidade  a forma tantas vezes a roçar o leviano como alguns membros desta pequena comunidade, menorizavam em respostas tíbias, as minhas questões de preocupação sobre a “floresta” que nos absorve mesmo adentrando-se na vila , e a  ausência (ou por mim por defeito próprio não apercebida) de uma mudança estratégica de paradigma acerca desta questão essencial e de vida. Estamos a falar do futuro e na sustentabilidade da vida como a conhecemos.

Para quem como eu vem de fora e acreditando no bom senso como  conselheiro (não precisamos de ser especialistas em tudo), se alguma coisa mudou, então, nem consigo pensar como poderia ter sido antes pior. Vivemos rodeados de espécies invasoras, destrutivas ávidas da biodiversidade. Se o diabo existe, nas palavras de Miguel Sousa Tavares, é a encarnação dessas espécies que estão a exaurir a vida do nosso país interior.

Não consigo compreender! Como não consigo compreender a forma “catedrática” como algumas pessoas com enfados a roçar a ironia, me deram a entender a minha ignorância de homem que vem da cidade e que nada percebe do campo, como se “o campo” fosse latifúndio particular interdito a quem vem da cidade.

Vivo (vivemos) rodeado por um potencial incontrolável de catástrofe eminente, enquanto os “especialistas do palreio” palitam os dentes.

Podia ir-me embora, podia. Mas tenho para mim como convicção inabalável que a nossa terra é onde encontramos um sítio para pendurar o chapéu, e o meu pendurei-o aqui.

Gostaria de participar em praça pública, numa discussão civilizada entre todos, e para esse efeito, deste e outros temas de importância maior para a vida das pessoas.

A democracia somos nós que a construímos, não se decreta.

 

 

 

 

 

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