Quando estou a voar, vejo-o como uma forma natural de ser que sinto e sonho. Eu voo mesmo. E praticamente todos os dias, nem sei dizer se ando mais ou se voo mais. Voo muito e bem. Executo esse movimento, esse impulso, sem nenhum esforço, como sendo automático em mim, o que dá garantias que na realidade, seja ela qual for, eu voo. Por vezes faço voos rasantes às coisas e fico com uma sensação de que a qualquer momento vou aterrar numa cabeça de um transeunte distraído com o que vem do alto e que está a passear o cão sem esperar que algo lhe caia do céu, ou numa mesa de piquenique apetitosamente posta num jardim, onde acabo por estragar o almoço de um casal nova-zelandês que veio fazer Erasmus. Enervo-me e fico mais desajeitado, o que se reflecte na qualidade do meu voo. Raramente, quando estou assim não consigo ganhar altitude, apesar do esforço imenso que faço no que supostamente será bater as asas, mas a verdade é que nunca as senti, nem a bater nem sem ser a bater, e não me lembro de as ter visto alguma vez acopladas às minhas costas. Acabo por dar por mim já não a voar mas a andar a pé. Amuo e volto para casa. Mas também tenho ocasiões em que executo grandes voos planados em altitudes altíssimas, seguidas de voo picado quase a entrar pelo chão adentro e quando estou mesmo a embater, num golpe de rins que até fico admirado como sou capaz, reverto a queda e vou disparado como uma bala no sentido do céu, cada vez mais alto e mais longe, quase a perder o folego. Sopesando os prós e os contras, gosto bastante de voar, tenho instantâneos de grande felicidade, tão transbordante que me distraio, desequilibro-me e perco altitude, rodopiando de tal forma que fico cheio de tonturas, logo dores de cabeça, e volto para casa. Nunca revelei estes pensamentos a ninguém com receio que me achem doido. Se os contasse ninguém acreditaria em mim. A bem da minha reputação é melhor ficar calado e deixar que os outros pensem o que entenderem e que fiquem com as suas verdades, que são sempre mais verdades que as dos outros. Tenho a sensação forte de que ninguém dá conta de que eu voo, mas não posso ser mais óbvio, há dias em que não faço mais nada senão rodopiar em piparotes mesmo à frente dos seus olhos, e eles nada, olham em frente e seguem a sua vida. Vivo afinal uma grande frustração: os pássaros não me reconhecem como um dos seus e as pessoas, metidas com as suas coisas íntimas, não veem nada nem se apercebem de nada. Fui uma vez ao médico e este disse-me que isso era receio de não conseguir resolver coisas da minha vida, e que era recorrente, ou seja não me livraria tão cedo dessa ideia de que vo,. Não percebi onde ele queria chegar e a consulta foi caríssima. Nunca mais lá voltei, saí do consultório pela janela, onde ele em introspeção psicanalítica nem deu conta de que saí voando. Ainda lá deve estar, congelado, pensando se também não terá ele mesmo, um especialista, coisas por resolver na vida que levem a um belo e desafogado voo. No meio de toda esta trapalhada não vejo que mal tem eu continuar convencido que voo, independentemente de ter ou não coisas por tratar, mesmo não sendo pássaro. Nem sempre nascemos como queremos e eu, era ser pássaro, ou então pedra, que gosto bastante delas. Por falar nelas, tenho uma consideração inaudita e reverente pelas pedras. Quase todas. Sendo duras, como todos sabemos, para mim não, são frágeis, e trato-as com mil cuidados. Não há sítio onde vá, e já fui por esse mundo fora, tão fora, que lhe dei a volta e vim parar ao ponto de partida, que não traga uma ou várias pedras. Ponho-as alinhadas, nas prateleiras onde estão os livros que leio e que trato como se fossem pedras. Respeito ambos. É quase obsessivo. Se frequento uma praia, não tiro os olhos da areia e não consigo parar quieto, estendido numa toalha ou sentado numa cadeira a apanhar o sol que nos faz tanta falta à pele e ao corpo em geral. Na linha de água, para trás e para a frente, a recolher pedras, escolhê-las, ajeitá-las nas mãos, limpando-as da areia, pô-las nos bolsos dos calções, e quando estes estão cheios, no chapéu ridículo que me acompanha quando vou à praia, local em que as pessoas também estão distraídas e uma pessoa pode pôr um chapéu que a faça ridícula sem que os outros o critiquem por isso. Tenho pedras de todos os lugares, mas como o alinho nas prateleiras já não sei a sua proveniência. Limpo-lhes o pó com frequência. Seja qual for a colecção que se tenha, do que seja, deve-se limpar o pó com alguma regularidade. Algumas são bastante pesadas e como não as posso ter nas prateleiras, tenho-as no chão, nos cantos dos tapetes. Quando estou a voar, porque a vista já não é o que era, não consigo ver pedras, o que me aborrece. É mesmo a única coisa que me aborrece no voar: não poder distinguir as pedras. Por vezes fico tão aborrecido com isso, que deixo de bater as asas, amuo e volto para casa. Passo férias inteiras na praia a apanhar pedras e as pessoas perguntam-me porque o faço. Nem lhes respondo, é como apanhar conquilhas. Não critico os que o fazem, que me deixem em paz. Gostaria de ter mencionado ao médico esta minha paixão pelas pedras, que estou seguro daria credibilidade à minha pessoa, aos seus olhos, digo. Mas não me deu essa oportunidade, com a sua arrogância intelectual mal disfarçada, pelo tique de palitar os dentes. Onde já se viu um psiquiatra a palitar os dentes, no meio de uma sessão com um paciente! Um tique mais consentâneo com o seu estatuto, ainda vá. Agora um palito? Já disse que também gosto dos livros? Um amor que chega a ser sensual? Já vos vou falar sobre isso, agora não posso porque estou a voar e tenho de me concentrar, antes que venha por aí abaixo.
** Renée Milet
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