Avançar para o conteúdo principal

Só falo do que sei, porque o vivo sentindo ou porque o sinto sonhando.

 

**

Quando estou a voar, vejo-o como uma forma natural de ser que sinto e sonho. Eu voo mesmo. E praticamente todos os dias, nem sei dizer se ando mais ou se voo mais. Voo muito e bem. Executo esse movimento, esse impulso, sem nenhum esforço, como sendo automático em mim, o que dá garantias que na realidade, seja ela qual for, eu voo. Por vezes faço voos rasantes às coisas e fico com uma sensação de que a qualquer momento vou aterrar numa cabeça de um transeunte distraído com o que vem do alto e que está a passear o cão sem esperar que algo lhe caia do céu, ou numa mesa de piquenique apetitosamente posta num jardim, onde acabo por estragar o almoço de um casal nova-zelandês que veio fazer Erasmus. Enervo-me e fico mais desajeitado, o que se reflecte na qualidade do meu voo. Raramente, quando estou assim não consigo ganhar altitude, apesar do esforço imenso que faço no que supostamente será bater as asas, mas a verdade é que nunca as senti, nem a bater nem sem ser a bater, e não me lembro de as ter visto alguma vez acopladas às minhas costas. Acabo por dar por mim já não a voar mas a andar a pé. Amuo e volto para casa. Mas também tenho ocasiões em que executo grandes voos planados em altitudes altíssimas, seguidas de voo picado quase a entrar pelo chão adentro e quando estou mesmo a embater, num golpe de rins que até fico admirado como sou capaz, reverto a queda e vou disparado como uma bala no sentido do céu, cada vez mais alto e mais longe, quase a perder o folego. Sopesando os prós e os contras, gosto bastante de voar, tenho instantâneos de grande felicidade, tão transbordante que me distraio, desequilibro-me e perco altitude, rodopiando de tal forma que fico cheio de tonturas, logo dores de cabeça, e volto para casa. Nunca revelei estes pensamentos a ninguém com receio que me achem doido. Se os contasse ninguém acreditaria em mim. A bem da minha reputação é melhor ficar calado e deixar que os outros pensem o que entenderem e que fiquem com as suas verdades, que são sempre mais verdades que as dos outros. Tenho a sensação forte de que ninguém dá conta de que eu voo, mas não posso ser mais óbvio, há dias em que não faço mais nada senão rodopiar em piparotes mesmo à frente dos seus olhos, e eles nada, olham em frente e seguem a sua vida. Vivo afinal uma grande frustração: os pássaros não me reconhecem como um dos seus e as pessoas, metidas com as suas coisas íntimas, não veem nada nem se apercebem de nada. Fui uma vez ao médico e este disse-me que isso era receio de não conseguir resolver coisas da minha vida, e que era recorrente, ou seja não me livraria tão cedo dessa ideia de que vo,. Não percebi onde ele queria chegar e a consulta foi caríssima. Nunca mais lá voltei, saí do consultório pela janela, onde ele em introspeção psicanalítica nem deu conta de que saí voando. Ainda lá deve estar, congelado, pensando se também não terá ele mesmo, um especialista, coisas por resolver na vida que levem a um belo e desafogado voo. No meio de toda esta trapalhada não vejo que mal tem eu continuar convencido que voo, independentemente de ter ou não coisas por tratar, mesmo não sendo pássaro. Nem sempre nascemos como queremos e eu, era ser pássaro, ou então pedra, que gosto bastante delas. Por falar nelas, tenho uma consideração inaudita e reverente pelas pedras. Quase todas. Sendo duras, como todos sabemos, para mim não, são frágeis, e trato-as com mil cuidados. Não há sítio onde vá, e já fui por esse mundo fora, tão fora, que lhe dei a volta e vim parar ao ponto de partida, que não traga uma ou várias pedras. Ponho-as alinhadas, nas prateleiras onde estão os livros que leio e que trato como se fossem pedras. Respeito ambos. É quase obsessivo. Se frequento uma praia, não tiro os olhos da areia e não consigo parar quieto, estendido numa toalha ou sentado numa cadeira a apanhar o sol que nos faz tanta falta à pele e ao corpo em geral. Na linha de água, para trás e para a frente, a recolher pedras, escolhê-las, ajeitá-las nas mãos, limpando-as da areia, pô-las nos bolsos dos calções, e quando estes estão cheios, no chapéu ridículo que me acompanha quando vou à praia, local em que as pessoas também estão distraídas e uma pessoa pode pôr um chapéu que a faça ridícula sem que os outros o critiquem por isso. Tenho pedras de todos os lugares, mas como o alinho nas prateleiras já não sei a sua proveniência. Limpo-lhes o pó com frequência. Seja qual for a colecção que se tenha, do que seja, deve-se limpar o pó com alguma regularidade. Algumas são bastante pesadas e como não as posso ter nas prateleiras, tenho-as no chão, nos cantos dos tapetes. Quando estou a voar, porque a vista já não é o que era, não consigo ver pedras, o que me aborrece. É mesmo a única coisa que me aborrece no voar: não poder distinguir as pedras. Por vezes fico tão aborrecido com isso, que deixo de bater as asas, amuo e volto para casa. Passo férias inteiras na praia a apanhar pedras e as pessoas perguntam-me porque o faço. Nem lhes respondo, é como apanhar conquilhas. Não critico os que o fazem, que me deixem em paz. Gostaria de ter mencionado ao médico esta minha paixão pelas pedras, que estou seguro daria credibilidade à minha pessoa, aos seus olhos, digo. Mas não me deu essa oportunidade, com a sua arrogância intelectual mal disfarçada, pelo tique de palitar os dentes. Onde já se viu um psiquiatra a palitar os dentes, no meio de uma sessão com um paciente! Um tique mais consentâneo com o seu estatuto, ainda vá. Agora um palito? Já disse que também gosto dos livros? Um amor que chega a ser sensual? Já vos vou falar sobre isso, agora não posso porque estou a voar e tenho de me concentrar, antes que venha por aí abaixo.


** Renée Milet

Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,