Fecha os olhos, vá, eu sou amiga do escuro e ele disse-me que também gosta de ti, não tenhas medo, puxa o lençol, aconchega-te, e descansa meu menino, eu velo por ti.
E ali
ficava ela, sentada ao lado da cama, cansada de um dia cansado, a velar por mim,
era o que sabia fazer melhor.
Vejo-a a sorrir, olhos mínimos, pretos, rútilos, grandes pequenos olhos os seus. Franzina, muito magra, quase a desfazer-se, sem cuidado especial no vestir, a velar por mim.
O corpo, como nenhum outro, resistiu às intempéries
dos dias que se sucedem, a biologia cumpriu-se no que é expectável; a alma que se
calhar não existe ou foi para partes incertas; o espirito, é o quê?; nada
ficou, mas ficou tudo: a imagem tridimensional do seu corpo, do seu rosto, onde
está sempre bem vestido um sorriso honestíssimo e bom, e os olhos, atentos,
agudos, que veem todas as panorâmicas do mundo. Só não ficou a voz, esfumou-se
como a areia escapa das mãos. É um grande esforço, faz tanta falta o som da voz. Perdeu-se.
Quanto à forma, não interessa se toda a constituição de si
ficou em mim, dentro de mim, ou fora de mim. É uma questão inoportuna. Ela vela
por mim.
Há momentos em que conversamos, sim, continuamos a conversar e
são agradáveis essas conversas. Falamos sobre tudo, até banalidades, e pequenas
anedotas, ela gostava tanto de anedotas. Por vezes, não precisamos de conversar,
basta o olhar e entendemo-nos. Mesmo quando não falamos, nem a olho vendo-a,
porque nem sempre a consigo ver, só em certos dias, que não sabendo porque são
esses e não outros, tenho uma certeza inabalável ao despertar que vou estar com
ela, e acontece, ao tomar o café da manhã, que sinto a sua companhia quente e completa.
Sei então, como se não o soubesse desde sempre, que ela vela por mim. O que me
basta.
Preenchido de cheio, posso sair à rua, dar de chapa com o sol a
comichar-me na pele, amaciar a chuva agreste se for dia disso, e olhar para o
céu. É fundamental olhar sempre para o céu, e depois, virar o meu rosto para o
lado e piscar-lhe o olho, a ela, que vela por mim.
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