Instalou-se uma tempestade
violenta. Está há dias assim. O céu assustador e escuro. O mar, um mar de
trevas. É o nosso normal. Extremos. Não há estações do ano. Há
imprevisibilidade. Quando as condições se complicam, vivemos debaixo de terra.
Construímos túneis que ligam as casas entre si. Quando se pode estar cá fora ou
por frio extremo, ou por calor impossível, estamos soterrados. Somos ratos.
Como praticamente não
vemos nada estamos a ficar como morcegos. Ratos e morcegos. Quero crer que
estamos a desenvolver uma nova sensibilidade: a percepção dos objectos há
distância. Como um radar. Não é o que dizem? que os morcegos têm essa
capacidade?
Nestes dias, que por vezes
são muitos, em que estamos nesta letargia expectante, não lemos livros. Isso
desequilibra-nos ainda mais. Quando estamos nessa espécie de catacumbas,
praticamos o silêncio. De resto, desde que o mundo é como é, ou como o conheço,
falamos todos muito pouco. Como vivemos num espaço reduzido, não temos
necessidade das palavras. Ninguém tem novidades para dar. Se fossemos visitados
por estranhos, se viajássemos, então sim, fazia sentido falar, para conhecer os
outros. Como não temos visitas, encerramos as palavras dentro de nós. Não me
lembro da última vez que utilizei a palavra amor. Nem outras.
Quando as condições do
tempo estão para dificultar a vida, aceitamos as coisas como elas são. Não
podemos fazer nada. Esperar.
Depois, quando a paz
regressa, dizemo-nos adeus, de umas ilhas para as outras., acenando com grandes
bandeiras coloridas, feitas para o efeito. Embarcamos e vamos dar uns abraços e
beijos. É o que apetece.
Agora controlamos a
natalidade. Foi pelos excessos que se chegou a este ponto. Talvez continuem a
haver demasiados homens noutros locais. Aqui não. Com as condições cada vez
mais inóspitas terminou a globalização. Deixou de ser possível movermo-nos
constantemente de um lado para o outro, para qualquer parte do mundo. Com os
recursos foi ainda pior: esgotaram-se as fontes de produção. Eramos demasiados
e comíamos demasiado, apesar de haver tanta gente a morrer com fome. Nunca compreendi
essa contradição.
Actualmente, preocupamo-nos
mais com os velhos do que com os novos. Apreciamos a sua companhia. São os
únicos que têm autorização para dizer tudo o que pensam e lhes apetecer. Não podemos
deixar que morram sem terem dito tudo o que têm para dizer. As pessoas devem
esgotar em vida as suas fontes: de pensamentos e de palavras, de sentimentos,
emoções, tudo.
Quando estamos reunidos,
nos longos dias em que estamos defendidos das tempestades várias, na total
escuridão, alguns contam histórias, coisas que brotam de si, não sabemos se
verdadeiras se falsas, não interessa, gostamos de os ouvir.
Quando morremos, põe-nos
numa barca, e deixam-nos ir, ao sabor das marés, das ondas, dos fluxos do mar.
É uma viagem, a derradeira, sem destino marcado. Não acreditamos no paraíso.
Já se percebeu que não há nenhuma
espécie de moeda, dinheiro. Não há nada para comprar. Cada um gere como pode e
sabe a sua suficiência. Incentivamos as trocas.
Como não há sentimentos de
posse, as relações entre géneros são livres. Não temos compromissos mas
respeitamo-nos. Em quase todos de nós, as casas onde vivemos estão abertas.
Entra quem quer, fica se quiser, sai quando lhe apetecer.
A casa que habito neste
momento é antiga. São todas. Com excepção de uma ilha já um pouco distante que
tem uns edifícios-torre, desinteressantes, vidrados, as demais as casas que
ficaram acima da linha de água são antigas. Quando vim para esta, encontrei uma
pequena, diria pequeníssima biblioteca, que pertenceu seguramente a alguém que
teve prazer em pensar e fazer uma reflexão disso. Era uma biblioteca de três
livros apenas, mas não é pela quantidade que se ajuíza da qualidade.
“Viagens”. Olga Tokarczuk.
Na badana da capa, que se preservou, diz que a autora foi prémio Nobel da Literatura.
Já não se dão prémios a autores literários, nem a outros artistas artistas. Com
o desaparecimento dos meios de comunicação quando a reserva de árvores na terra
deixou de prover para o fabrico do papel, e com a inoperância das
telecomunicações devidos aos fenómenos atmosféricos adversos, a existência de
prémios e concursos não fez mais sentido. Estas coisas vivem da divulgação, de
anunciar a terceiros. Esgotada essa fonte, perdem a razão de existir.
Como já disse os homens
agora só leem, não escrevem. E agora que penso nisso, quando um dia todos os
livros acabarem de tão manuseados que foram, isso vai acontecer, com que é que
se vão entreter os homens? Se deixaram de escrever? Devo levar esse assunto à
assembleia dos cidadãos.
Os outros dois livros que
encontrei são de autoria de Jean-Jacques Rousseau, um tem o título de “Cartas
Morais”, o outro de “Contos e Apólogos.” Era Suíço. Foi filósofo, político,
humanista. Diz na badana que contribui para a “Enciclopédia, ou Dicionário
Regional das Ciências, Artes e Profissões”, de Diderot e D’Alembert. Não
sabemos o que foi essa enciclopédia. Tão pouco sabemos o que seja uma
enciclopédia. Dos livros que ficaram, nas nossas bibliotecas, não há nenhum que
reúna as palavras todas e que as explique, os seus significados, as intimidades com outras,
as antipatias que têm. Assim, tempos que adivinhar. Algumas conservam mistério,
inexpugnáveis, inatingíveis. Muitas desvendamos por associação. É também esse
um dos grandes encantos da leitura: um desconhecido, que se desbrava até se
ganhar convívio e intimidade.
Já os li inúmeras vezes e
gosto.
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