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DIÁRIO DE DIAS FUTUROS - 2

 


Instalou-se uma tempestade violenta. Está há dias assim. O céu assustador e escuro. O mar, um mar de trevas. É o nosso normal. Extremos. Não há estações do ano. Há imprevisibilidade. Quando as condições se complicam, vivemos debaixo de terra. Construímos túneis que ligam as casas entre si. Quando se pode estar cá fora ou por frio extremo, ou por calor impossível, estamos soterrados. Somos ratos.

Como praticamente não vemos nada estamos a ficar como morcegos. Ratos e morcegos. Quero crer que estamos a desenvolver uma nova sensibilidade: a percepção dos objectos há distância. Como um radar. Não é o que dizem? que os morcegos têm essa capacidade?

Nestes dias, que por vezes são muitos, em que estamos nesta letargia expectante, não lemos livros. Isso desequilibra-nos ainda mais. Quando estamos nessa espécie de catacumbas, praticamos o silêncio. De resto, desde que o mundo é como é, ou como o conheço, falamos todos muito pouco. Como vivemos num espaço reduzido, não temos necessidade das palavras. Ninguém tem novidades para dar. Se fossemos visitados por estranhos, se viajássemos, então sim, fazia sentido falar, para conhecer os outros. Como não temos visitas, encerramos as palavras dentro de nós. Não me lembro da última vez que utilizei a palavra amor. Nem outras.

Quando as condições do tempo estão para dificultar a vida, aceitamos as coisas como elas são. Não podemos fazer nada. Esperar.

Depois, quando a paz regressa, dizemo-nos adeus, de umas ilhas para as outras., acenando com grandes bandeiras coloridas, feitas para o efeito. Embarcamos e vamos dar uns abraços e beijos. É o que apetece.

Agora controlamos a natalidade. Foi pelos excessos que se chegou a este ponto. Talvez continuem a haver demasiados homens noutros locais. Aqui não. Com as condições cada vez mais inóspitas terminou a globalização. Deixou de ser possível movermo-nos constantemente de um lado para o outro, para qualquer parte do mundo. Com os recursos foi ainda pior: esgotaram-se as fontes de produção. Eramos demasiados e comíamos demasiado, apesar de haver tanta gente a morrer com fome. Nunca compreendi essa contradição.

Actualmente, preocupamo-nos mais com os velhos do que com os novos. Apreciamos a sua companhia. São os únicos que têm autorização para dizer tudo o que pensam e lhes apetecer. Não podemos deixar que morram sem terem dito tudo o que têm para dizer. As pessoas devem esgotar em vida as suas fontes: de pensamentos e de palavras, de sentimentos, emoções, tudo.

Quando estamos reunidos, nos longos dias em que estamos defendidos das tempestades várias, na total escuridão, alguns contam histórias, coisas que brotam de si, não sabemos se verdadeiras se falsas, não interessa, gostamos de os ouvir.

Quando morremos, põe-nos numa barca, e deixam-nos ir, ao sabor das marés, das ondas, dos fluxos do mar. É uma viagem, a derradeira, sem destino marcado. Não acreditamos no paraíso.

Já se percebeu que não há nenhuma espécie de moeda, dinheiro. Não há nada para comprar. Cada um gere como pode e sabe a sua suficiência. Incentivamos as trocas.

Como não há sentimentos de posse, as relações entre géneros são livres. Não temos compromissos mas respeitamo-nos. Em quase todos de nós, as casas onde vivemos estão abertas. Entra quem quer, fica se quiser, sai quando lhe apetecer.

A casa que habito neste momento é antiga. São todas. Com excepção de uma ilha já um pouco distante que tem uns edifícios-torre, desinteressantes, vidrados, as demais as casas que ficaram acima da linha de água são antigas. Quando vim para esta, encontrei uma pequena, diria pequeníssima biblioteca, que pertenceu seguramente a alguém que teve prazer em pensar e fazer uma reflexão disso. Era uma biblioteca de três livros apenas, mas não é pela quantidade que se ajuíza da qualidade.

“Viagens”. Olga Tokarczuk. Na badana da capa, que se preservou, diz que a autora foi prémio Nobel da Literatura. Já não se dão prémios a autores literários, nem a outros artistas artistas. Com o desaparecimento dos meios de comunicação quando a reserva de árvores na terra deixou de prover para o fabrico do papel, e com a inoperância das telecomunicações devidos aos fenómenos atmosféricos adversos, a existência de prémios e concursos não fez mais sentido. Estas coisas vivem da divulgação, de anunciar a terceiros. Esgotada essa fonte, perdem a razão de existir.

Como já disse os homens agora só leem, não escrevem. E agora que penso nisso, quando um dia todos os livros acabarem de tão manuseados que foram, isso vai acontecer, com que é que se vão entreter os homens? Se deixaram de escrever? Devo levar esse assunto à assembleia dos cidadãos.

Os outros dois livros que encontrei são de autoria de Jean-Jacques Rousseau, um tem o título de “Cartas Morais”, o outro de “Contos e Apólogos.” Era Suíço. Foi filósofo, político, humanista. Diz na badana que contribui para a “Enciclopédia, ou Dicionário Regional das Ciências, Artes e Profissões”, de Diderot e D’Alembert. Não sabemos o que foi essa enciclopédia. Tão pouco sabemos o que seja uma enciclopédia. Dos livros que ficaram, nas nossas bibliotecas, não há nenhum que reúna as palavras todas e que as explique, os  seus significados, as intimidades com outras, as antipatias que têm. Assim, tempos que adivinhar. Algumas conservam mistério, inexpugnáveis, inatingíveis. Muitas desvendamos por associação. É também esse um dos grandes encantos da leitura: um desconhecido, que se desbrava até se ganhar convívio e intimidade.

Já os li inúmeras vezes e gosto.


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