Quanto mais se avança nas
casas da vida, menos se dorme. Da ampulheta escapam-se entre os dedos, os grãos
de areia do tempo. É assim, para aproveitar o que resta, ou a correr atrás dos
prejuízos, que se dorme menos.
Desde que António
trouxe para casa o amigo eremita, resgatado a mando de Deus num sonho intenso que
teve, a aldeia de um momento para o outro, de vazia, ficou cheia. Dois poucos,
três muitos. Pedra a pedra, tijolo a tijolo, as traves de madeira, todos os
espaços, de dentro e de fora, encheram-se do rodopiar livre e palpitante das
frases construídas nas intermináveis conversas que os três amigos tiveram,
sempre à volta do fogo, a recuperarem saudades antigas, anos perdidos, agora
guardados na sua memória colectiva.
O Casimiro estava feliz
por ter voltado mas sabia - ele e os amigos -, que seria uma estadia curta,
estava em tempo de descontos, já de saída. Não estava assustado, estava
preparado. Viveu tanto tempo sozinho que o teve mais do que suficiente para se
amigar com a morte, sempre a rodar, seduzindo com indecência.
A sua fragilidade
física mal lhe dava alento para se sentar na cama e os amigos que tinham
concordado que ele nunca mais estaria sozinho, reuniam-se à sua beira, sentados
nos bancos de madeira tosca, tagarelando tolices para suavizarem o ambiente.
Até marchinhas e cantilenas houve. Também diziam coisas sérias. Nesses dias
assistiu-se a uma audiência heterogénea de seres a entrar, a sair, a belo prazer,
pelas portas e janelas abertas à visita dos cães da casa e das redondezas, dos
pássaros, os amigos da Xica a chapim-azul, de uma ou outra cabra curiosa, dos
jumentos, espertíssimos e muito interessados nas conversas dos homens. Como uma
sala de visitas e convívio, um pequeno salão de festas onde todos entravam
cheios de boa disposição e de lá saiam de consciência aligeirada.
Não sabendo ao certo -
só desconfiando-, do que conversam os cães, os burros, os pássaros e essa
alimária toda que o visitou nesses dias, do que conversam os velhos? Do
passado. Das recordações, Das memórias longínquas. Das histórias boas. Dos
remordimentos e das grandes tristezas. Dos sonhos. Do que podia ter sido e não
foi. Do que foi sem intenção nem escolha. Dos ausentes. Dos filhos e netos. De
ódios, raivas. Dos amores. Do Amor.
Alguns, cansados, falam
em círculo. As mesmas coisas repetidas vezes sem conta. Não avançam.
Encalharam, náufragos de si mesmos, condenados ao imparável bater das ondas nos
seus cascos, cheios de rombos, até à erosão final. Alguns, melhor realizados,
desenrolam os seus papiros de episódios felizes, acontecimentos alegres,
bem-feitorias suas e dos outros.
Os heróis, não há
outros heróis senão estas gentes do povo, esquecidas e deixadas às
perversidades da sorte, desavergonhada, corrupta e fácil, sempre de mãos dadas com
os poderosos, os bonitos, os bem-falantes, os de pergaminho na mão. Se um dos
rasteiros consegue uma pequenina coisa, sobe um degrauzito, um patamar um tudo nada mais alto, é como se tivesse
completado uma circunvolução do globo, um feito enorme, um orgulho. E é. O
esforço, para o impacto que teve, foi dez vezes maior.
Já se vê que estes dias
foram um festim numa aldeia que não se virá a saber o nome, nem a topografia,
basta que se saiba numa serrania com vista do mar, das praias, dos pescadores,
dos turistas acidentais, lá longe, a saber que tudo isso existe.
António, Quim e
Casimiro, colaram a história de cada um nas histórias de cada um, fizeram-na só
uma, e a três vozes, encontraram um final adequado, com um sentido, o seu
sentido.
Perdoaram-se
minudências, recompuseram-se, mimaram-se e antes de Casimiro partir, Deus já
não podia esperar mais por ele – Que ia à
frente para ver como era. Se lhes convinha a nova morada. E caso não conviesse,
que voltaria para os avisar, que se deixassem ficar o mais que pudessem -
tiveram os três uma última conversa, no seu jeito de falar, donos de um punhado de palavras, as suficientes, reproduzidas nas suas intenções:
- O azul do céu.
Enquanto não tive cortinas nos meus olhos, foi o que mais gostei. Que
espectáculo! – diz Casimiro quase sussurrando as palavras, a poupar o pouco
fôlego.
- Eu foi do número de
seres e coisas que tem o mundo. Tantos, tantos, cada um com as suas diferenças,
todos à sua maneira, imprescindíveis – o António.
- Eu o que mais gostei
foi de ter amado e de ter sido amado. Todos os rostos do amor: o filial, o
fraternal, o amor das coisas belas, o amor do desejo, o amor cúmplice. É o que
levo da vida – Remata o Quim.
- Digo o azul, para
representar todas as cores que as aprecio. Quando numa alvorada ou num
entardecer tudo parece estar no seu ponto de equilíbrio, quando as cores que
vestem o mundo dão o seu melhor, aprimoradas pelas condições da luz à condição
da pureza original, enche-nos o peito.
- É isso: enche o
peito. Somos todas as cores misturadas em cada um de nós em proporções
diferentes. Não há dois iguais.
- Acho que falamos
todos do mesmo.
- Acho que tens razão.
- Sim, falamos dos
mistérios da vida, do grande milagre, o milagre original da vida, que todos os
dias se renova como pela primeira vez e mesmo que hoje tenha sido um dia de
catástrofes e mantos de tristeza, amanha será um dia radioso.
- Viver a participar, se for possível deixar rasto, vale muito mais dos que todas as penas ter.
Se as almas que há na
terra soubessem que o céu é um local tão agradável, mudavam-se quase todas. O
problema é que nem todas entram no paraíso. Há umas, com defeito, que vão para
o purgatório (uma espécie de subúrbio do paraíso) para conserto e reciclagem,
antes de estarem novamente capacitadas a reentrar no céu. Aquelas que vão para
o inferno (uma espécie de subúrbios ainda mais periféricos que os anteriores),
são as que não têm conserto, o lixo. Não se pense que são muitas, só um punhado
delas, e ficaríamos bastante admirados em ver que critérios de escolha se
baseiam para as que têm conserto e as que não. Por exemplo, um ditador, um
facínora, ausente de compaixão pelos seus súbditos, pode ser um Hitler. Quando
se suicidou com cianeto não foi para o inferno, foi para o purgatório: era uma
boa alma que tinha sido intoxicada por reencarnações constantes, sem descanso,
o que causou uma sobrecarga que se veio a manifestar num mal funcionamento da
noção do bem e do mal. Esse problema técnico, um curto-circuito, um problema
menor, que facilmente se regula e equilibra. Para que conste, a alma de Hitler
já reencarnou duas vezes e os corpos com nome que incorporou, um deles foi
monge cartuxo até morrer – mais de cinquenta anos – num mosteiro na Catalunha,
e o que se seguiu, um Albanês dirigente sindical comunista convicto (este ainda
está vivo). Já o que julgaríamos como uma alma boa, assistente operacional de
um lar de idosos, que tira uma porção ligeiríssima, quase indetectável, da
refeição da noite dos utentes, que não dão sequer pela falta, para levar para
casa, para compor o jantar dos seus, que são muitas bocas para alimentar e o
vencimento de uma assistente operacional não é dos mais famosos, essa alma,
quando bate aos portões do céu e vem Pedro com o formulário para preencher, vai
para o inferno, porque uma pequena disfunção como a sua é muito mais grave, é
difícil de diagnosticar, nunca se conserta inteiramente, vão sempre aparecer
novas fissuras de carácter, e isto vem a causar nas dinâmicas do Céu, um
desgaste muito grande.
Nestas ocasiões consomem-se
grandes quantidades de hidromel, mas como são deuses e aparentados, não se diz
nada, eles lá sabem.
Passou-se assim com a
alma do defunto Casimiro, recebida em apoteose como uma filha pródiga, não
porque o corpo do Casimiro se tenha destacado por alguma coisa em particular,
mas precisamente pelo seu contrário: porque soube queimar o tempo de mais uma
existência humana em quietude, em águas mornas, mansas, aquietadas. Foi um
corpo que não deu trabalhos suplementares, tudo direitinho do princípio até ao
fim. E não esquecer o que sofreu na guerra sem sentido por onde andou obrigado.
É destas almas, que Deus mais gosta.
Entretanto António e
Quim, seja porque Casimiro lhes soprou algo aos ouvidos cumprindo o que tinha
prometido aos amigos, seja por vontade própria, desistiram de morrer e
casmurros como são, não vai ser fácil alterar essa decisão.
António reformou-se do
pastoreio, deixou o rebanho à responsabilidade do Manchas e da alemã que apesar de hippie tem vindo a demonstrar ser
uma cadela trabalhadeira e de família. Passa agora o lento correr dos dias
encostado à parede da casa do Quim, continuando este também encostado. Um ao
lado do outro. Fazem campeonatos de cuspo, a ver quem faz um arco mais
pronunciado e alcança mais longe, fazem quadras à desgarrada, riem como abades fartos
e satisfeitos e nesta modorra enganam a “ceifuda”,
a pata que a pôs, a pessonhenta.
Nos momentos crepusculares,
numa aldeia órfã de fregueses – só eles – projectam das suas cabeças para o
pequeno largo da aldeia, episódios das suas biografias, e nisso andam,
entretidos, no seu cinema paraíso. Todos se reveem no miúdo curioso que sonha
vir a ser projecionista, um homem banal, no entanto o mais poderoso da terra, demiurgo
agnóstico que dá vida a sonhos impressos numa fita de celulose.
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