Vivo a realidade, ou um
sonho? Ou vivo num sonho uma realidade? Não sei responder. Tudo é realidade.
Habito um castelo. É verdade.
Um castelo-ilha. Explico: um castelo cujas muralhas contornam todo o espaço de
uma ilha. Sabe-se pelo que aparentam ser datas, dados cronológicos
intencionais, esculpidos nalgumas partes das muralhas, que o castelo terá mais
de dois mil anos de existência. Tem também letras com pontos e alguns grafismos
que parecem símbolos, esculpidos. Esses não sabemos o que significam.
Da torre de menagem (só
recentemente soube que essa torre se chamava assim) deste castelo avisto outras
ilhas há minha volta. Até onde a vista
alcança. As ilhas são igualmente pequenas. Nenhuma tem um castelo, só igrejas. E
casas, não muitas. Estas ilhas, sei-o, li, são a auréola do cimo das colinas. O
que sobrou à terra depois da subida das águas. No mar que cobre praticamente
tudo, sobressai uma ponte que não leva a lado nenhum. O tabuleiro, colapsado, de
um lado e do outro, mergulha nas águas desse mar. Parece uma enorme escultura. Uma
peça de arte. É imponente e inútil. Se calhar é mesmo arte. Mais á frente,
permanece intacta uma estátua de um Deus de um culto antigo, que já não se
pratica. Deixou de haver cultos. Os deuses foram convidados a sair da nossa
convivência. Desembaraçamo-nos sozinhos.
De braços abertos, a
estátua. Vista assim, à distância, parece que flutua sobre as águas. Quando o
mar encrespa dá a sensação que a estátua caminha, sobre um manto líquido. É uma
sensação desconfortável. Em dias de tempestade (cada vez mais) chega a
assustar.
Sei o que é um castelo e
uma igreja e uma ponte, pelos livros de história. Agora os castelos não fazem
sentido. Não temos de nos defender de inimigos externos, só de nós próprios e
das condições da natureza. As igrejas sei que foram lugares de consolo e
expiação de pecados. Já não. São espaços amplos e frescos onde em dias de
canícula procuramos conforto. O silêncio faz bem.
Nas ilhas, salvaram-se
algumas pequenas bibliotecas, de pessoas comuns que viveram antes nestes locais.
Um pouco de tudo: crónicas, romances, poesias, alguma história, já o disse. São
esses livros que nos ligam ao passado. Senão pouco saberíamos. Como há poucos
livros todos temos interesse neles. Para isso, criámos um sistema rotativo em
que cada livro vai passando de mão em mão, por um período definido de tempo,
para dar oportunidade a que todos os leiam. É nossa obrigação mantê-los no
melhor estado de conservação possível. Quem não o fizer fica proibido de ler
livros. Como não há outra forma de entretenimento, ficam obrigadas a passar
todo o dia, debruçadas nas muralhas do castelo, ou nos beirais dos miradouros
das ilhas que habitam a olhar para o infinito. Sem mais pretensões. Esvaziam-se
ao fim de algum tempo e são dadas como inúteis. Em geral, as pessoas cumprem. São
o maior bem que possuem.
Somos muito poucos. Todos
os que puderam, fugiram para o interior, mas o interior é árido, deserto, com temperaturas
elevadas. Não creio que tenham sobrevivido muitos.
Os habitantes, poucos, das
ilhas comunicam entre si regularmente. Temos barcos. É muito difícil conseguir
alimentos. No espaço exíguo onde vivemos, tentamos cultivar pequenas hortas em
estufas. Felizmente também temos alguns animais de capoeira. É disso que nos
alimentamos.
Para além de nós e dos
poucos animais domésticos não há mais nenhum. Desapareceram os passarinhos, as
abelhas, todos os insectos. Também não há flores. Temos vindo a perder o
olfacto.
Os poucos que sobrámos,
nas ilhas, não somos nem felizes, nem infelizes. Deixamos correr o tempo. Não temos
para onde ir. Muito de vez em quando, algum de nós que não aguentou o sufoco do
confinamento numa ilha ridícula e minúscula, parte no seu pequeno barco. Sem rumo
definido. Parte para qualquer lado, na esperança da existência de um qualquer
lado, que o acolha, um sítio que seja fértil e pigmentado de vida e esperança.
Para os que ficamos,
alguns encostados nas muralhas, a vê-lo partir, sem acenar, e ele sem se virar uma
única vez para trás, para nós, um último adeus que fosse. Esperança é uma
utopia. Não é saudável.
Continuam a acontecer
ocasos sinfónicos cheios de cores fortes e penetrantes. Há nascer dos dias que
prometem manhãs gloriosas. No entanto, estamos desiludidos e deixámos de
apreciar esses espectáculos. Tudo nos parece artificial, irreal, mas não há
forma de ser diferente: perdemos a oportunidade.
Nestas ilhas não há
nenhuma forma de governo. Sendo poucos, ainda nos respeitamos. Aceitamos como
tarefas nossas todas as que ajudem a harmonia das nossas pequenas comunidades.
Reunimo-nos todos para
tomar decisões importantes e só avançamos por unanimidade.
Não sabemos o que
aconteceu. O mundo já deve ter sido melhor. Desconfiamos disso.
Como vivemos com pouco e
os livros são o nosso maior bem, que partilhamos de igual entre todos, não há
inveja, rancor, vingança.
Somos pessoas simples que
olham para o céu e assistem aos dias que acabam nas suas cores exuberantes com
a convicção de isso ser suficiente, o que nos deixa contentes.
Tenho vontade de partir. E
medo.
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