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NOVELA RÚSTICA - O EREMITA

 

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Nestas terras esquecidas há um personagem que ainda não foi apresentado. Vive muito para além do fim do caminho que termina na aldeia. Vive isolado, num casebre sem condições. Dizem que é um eremita, que não professa nenhuma religião senão a solidão.

Chama-se Casimiro, é uma boa alma, essa é pelo menos a opinião que Deus faz dele. No dia em que morrer vai directamente para o paraíso. São Pedro já foi avisado para não fazer perguntas.

Aos filhos, ama-se por igual, mas a uns mais que a outros e assim são as alminhas, aos olhos de Deus, todas filhas suas, mas algumas a receberem um carinho mais intencionado, a mostrar preferência, assim as abençoa o Senhor.

O Casimiro, ou melhor, a alma que o habita, é uma filha predilecta do Criador. Este a nada, nunca, lhe disse não. Basta um pedido do Casimiro, daqueles pedidos para o desconhecido, mais um desabafo, que se atiram para o ar, que o Casimiro já se sabe não é de crenças, logo o Senhor a atendê-lo. Assim são as coisas, como em tudo, para uns há muito, para outros pouco, é onde para a roda da sorte e não deixa de ser intrigante o facto de se darem conjugações improváveis, como neste caso, em que um agnóstico é um filho pródigo do Mais do que Tudo, o todo-Poderoso, o omnisciente, o omnipotente, o omnipresente e mais haja de qualificativos

Casimiro cumpriu serviço militar nas colónias ultramarinas. Foi a única vez e definitiva em que saiu do seu pequeno mundo. Numa viagem que teve ida e volta, pôs os pés na grande cidade e assustou-se, passou uns dias de sofrimento e agonia num barco, enjoadíssimo a anunciar o que aí vinha, e esteve dois anos a fingir-se de morto para poder sair vivo do inferno na terra.

Viu, viveu horrores, impossíveis de descrever. Foi na guerra da Guiné que Casimiro perdeu as palavras. Ele já levava poucas, veio de lá sem nenhuma.

Durante anos, perdeu a vontade de falar. Os que o amavam, apesar dos exames médicos o darem como saudável, acreditaram que ele tinha ficado surdo, talvez do ruido das bombas, ou do grito último dilacerante que abandona a vida quando uma bala penetra fatalmente um corpo de gente inocente.

Porque o amavam, aprenderam a linguagem dos gestos para comunicar. Casimiro aprendeu a ler os lábios das pessoas e assim aguentou continuar a viver. Todas as manhãs saia de casa, quando ainda se dormia, e ia refugiar-se num sítio ermo, que só ele sabia, longe da aldeia. Despejava então num fôlego de raiva e impotência todos os impropérios que conhecia e eram muitos. Leve, voltava a casa. Um dia não voltou. Ficou para sempre. Os familiares e os amigos deixaram de o procurar e esqueceram-se dele. De vez em quando, alguém que se perdeu, ou um desses caminhantes compulsivos de galgarem quilómetros inúteis aos fins-de-semana, dá de caras com o ermitério e refere que lá vive um idoso de longas barbas brancas, que não atende aos cumprimentos.

Casimiro tanto pediu solidão que Deus lhe fez a vontade. Mas agora está velho e deu de caras com a premência de se resolver. De pagar dívidas, de fechar contas. Há ainda alguém, vivo, que sofreu com o seu abandono. Ele precisa de gastar os abraços que ainda tem para dar. Acontece que Casimiro já não consegue andar. A distância que o separa do local onde os seus continuam com as suas existências, é uma distância intransponível.

Anda ele nesta ânsia por resolver e Deus, uma vez mais, Pai fidelíssimo e atento, se apieda do homem e entrelaça os acontecimentos nas suas causas e consequências para que numa lógica humana Casimiro sem nunca vir a saber que houve mão divina, possa ver os seus e fazer os balanços que tem a fazer.  

 António dorme profundamente e é muito provável que ele e o cão ressonem efusivamente. O cão sonha com a alemã, a cadela, que também dorme a seu lado. António sente-se muito bem, mais do que bem: nas nuvens. Está realmente num sítio de belas vistas, desafogado, um azul a perder de vista e o chão que pisa todo branco. Caminha animado por uma força desconhecida e interior que o impulsiona animadamente na direcção de um foco de luz que à medida que se vai aproximando ganha intensidade e calor. É a primeira vez que está ali, mas está tranquilo. Quando chegou ao final dessa espécie de túnel-luz, vê, esparramado, num trono imaculado de branco, um ser de uma dimensão física impressionante, diria que um homem, mas gigante. Tudo nele em grande proporção, mas harmoniosa ao mesmo tempo.

É Deus, só pode ser.

E é mesmo Deus, que quando leva os homens até si, para que não se assustem, assume essa figura antropomórfica, enorme, todavia humana.

António fica na dúvida. Deverá cumprimentá-lo? Um aperto de mão? é melhor não.

Deus diz-lhe:

- António tu és um bom homem. Tens vivido uma vida decente e pacata. És por vezes casmurro mais isso em ti não é defeito.

- Obrigado Senhor

- Deves ser mais condescendente com o teu cão, o Manchas. É um excelente animal, de bons princípios.

- Assim farei Senhor.

- Na sua vida seguinte, será humano. Já o merece ser.

- Agradeço por Ele meu Deus.

- Chamei-te aqui, mas ainda não é a tua hora. É somente um sonho, tão real que amanhã quando acordares te vais lembrar e executar o que tenho para fazeres por mim.

- O que terei que fazer Altíssimo?

- Não me chames Altíssimo que é ridículo, chama-me simplesmente Senhor.

- Desculpai Senhor.

- Amanhã, vais ter de perdoar e perdoar é das atitudes mais nobres e também das mais difíceis. Só perdoa quem se põe nos olhos do perdoado e isso não é fácil.

- Ensinai-me Senhor e assim farei.

- Vais esquecer as tuas desavenças antigas com o Casimiro, aquela dos limites das terras, coisa baixa e mesquinha. O Homem precisa da tua ajuda e eu amo-o muito.

- O que devo fazer?

- Vais procurá-lo. Não te preocupes que eu encaminho-te e levo-te a ele. Vais trazê-lo para a aldeia. Ele não pode caminhar e tem que saldar as dívidas da vida. Vais recebê-lo em tua casa, como se fosse um irmão e vais cuidar dele.

- Senhor, mas eu também estou doente!

- António, sou Eu que mando na próstata e em todas as coisas. Não te preocupes que o teu dia vai ser quando eu quiser e não será amanhã.

- Obrigado bom Deus, fico-lhe muito grato. Tratarei o Casimiro como sangue do meu sangue.

- António não me qualifiques porque eu não sou nem bom nem mau. Sou. Agora volta por onde vieste e cumpre-te.

António caminhou, animado, empossado numa missão, de volta ao mundo do seu mundo, para se cumprir.

Está na fundura de um cabeço que não lembra o diabo, pensa António, quando levado pela mão do Senhor, avista o ermitério. Desce como pode por um silvado cheio de espinhos, está a fazer a sua via sacra, o caminho da cruz. O casebre é pouco mais que um amontoado aleatório de pedras soltas. Abre a porta rangente, e é absorvido por um breu denso, uma ausência de luz. Leva tempo a habituar o olhar e quando o habitua distingue um corpo inerte numa enxerga imunda.

Olham-se dois olhos mortiços com dois olhos enevoados pelas cataratas. São dois velhos que se voltam a olhar. Sendo homens e não deuses podem cumprimentar-se com um aperto de mão. António estende a sua, Casimiro dá a que tem, tremente, frágil, sem força para apertar.

- Venho buscar-te. O teu tempo de solidão acabou. Agora é o tempo da reconciliação. Por ordem de Deus que tu não acreditas mas que te ama como a filho preferido, é de novo o tempo de ganhares as palavras e dizeres as frases certas que te ficaram por dizer, que há gente que as espera.

- Estou acabado. Não consigo andar.

- Vens comigo para casa.

António num esforço não fácil porque ele é também um velho, põe Casimiro às costas e numa penitência que é purificação, repete o caminho de Golgotá, a sua colina das caveiras, neste caso representada na geografia deste local ermo e inóspito, algures na serra mais meridional.

Chega ao entardecer, consumido de forças. O Quim que não sabia ao que o amigo ia quando o viu partir de manhã sem o rebanho nem a companhia dos cães, não quer acreditar no que vê: afinal era verdade, o Casimiro ainda estava vivo.

Numa atitude que não é a sua, coisa para se recordar mais tarde, desencosta-se da parede, levanta-se e ajuda o António a carregar Casimiro, nos poucos metros que faltam para chegarem a casa.

Nessa noite, os três, vão ter uma longa conversa e amanha vão despertar de bem com a vida. Haverá coisa melhor!

 

** créditos da foto: Danila Tkachenko

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