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NOVELA RÚSTICA - O MANCHAS VAI SER PAI

 



O Manchas vai ser pai. O António ainda não sabe e não tem como saber já que ele e o cão têm um problema de comunicação, e quando toca a puxar ao casmurro, cada um puxa mais. Vai ser uma surpresa. Foi a cadela da alemã que lhe deu a volta ao discernimento, pôs-lhe o aparelho hormonal e por sua vez, por ordem de acção directa, as extremidades em ebulição.

Um destes recentes dias, andavam eles a pastorear nos escondidos de um vale profundo, o António pôs-se a marinar, depois da bucha e da bota abaixo, ressonando efusivamente. As cabras e as ovelhas ruminavam que não fazem na vida outra coisa, são bonitinhas, mas também não é para tanto: esgotarem uma existência quando é tão difícil cá chegar, para virem ruminar, é um desperdício. Enfim, elas saberão!

Todos assim e o Manchas sem nada para se entreter, meteu-se no papel de cão farejador, a imitar ao perdigueiro – uma mania que ele tem - e deu de focinho com a cadela da alemã, que tal como a dona, ladrou de um modo estrangeiro que o Manchas teve dificuldade em entender.

O problema é que não é fácil resistir às cadelas alemãs: elas são loiras, têm olhos vistosos e põem-se de uma sedução de corpo, numa impertinência, num hipnotismo fatal, que nada nem ninguém consegue manter o tino atinado. Depois dá no que se vê. Neste caso uma gravidez não programada, que nunca o seria, que na natureza das outras espécies animais, excepção crê-se que da nossa, não há animal que faça gravidezes programadas, e muito menos planeamento familiar.

O Manchas vai ser pai e está em apuros, porque não contava vir a ter responsabilidades, assumir paternidade e muito menos aparecer em casa com o fruto dos escassos momentos de prazer frenético que teve com a alemã, que só se dá com cães finos apesar de serem ambas hippies (ela e a dona), e dos locais, é para  gozo no momento, todos uns labregos. Desta vez engravidou.

É que ele não é um cão moderno, e uma situação destas obriga a amigamento, não é cada um vai à sua vida e está esquecido.

O Manchas não vai para novo e sendo um cão farrusco e rústico, vá-se a ver o que vai dar a mistura com a camone. Até lá moita carrasco, ou seja, focinheira cerrada, nem um pio, ou seja, nem um latido.

O António anda desconfiado com o cão. Comportamentos estranhos, sempre à sua beira, a roçar-se, a pedir carícia, a lamber constantemente a mão do dono, ponha-se esta a jeito. Passa-se alguma coisa. A meio do dia, quando fazem uma pausa para comer e descansar, o cão desaparece e o António farta-se de assobiar, pôr as mãos em concha para o chamar, e nada: até que ele volte é quando lhe apetece. Quando volta, rabinho entre as pernas, a pedir desculpas, parece um menino de coro, um anjinho.

O tempo voa desmesuradamente e não se apanha, nem a cauda. A alemã, cadela estrangeira, pariu. O Machas é pai e é um cão de responsabilidade assumida, é o que é, não diz que é não sendo e sendo outra coisa, como o cão do Quim, dúbio, por isso desconfiável.

Manchas pensa de uma forma linear: se vive com o António, este é o avô dos seus filhos. Que orgulho ser pai, que enaltecimento na continuação da espécie. O avô vai ficar babado que é isso que ficam todos os avós. Vão todos para casa, espaço não falta: os filhotes, são seis, a loiraça e ele.

 António está apreensivo para não dizer preocupado, que não, ele não dá parte de fraco, homem de cabeça erguida, não se preocupa, mentiras: a voz da consciência a chamá-lo à boa razão, ele incompreensivelmente a fazer-se frio.

Quando despertou da sesta, ontem, nos nenhures da serra, chamou, assobiou, insistiu, enrouqueceu, e nada. Já decidido a partir sem o cão quando lentamente se vê aproximando o Manchas e a sua prole, loiraça incluída.

António não percebeu. O Manchas, chega-se ao patrão e lambe-lhe as mãos descaídas, de velho, em que tudo puxa para baixo, para a terra, a chamar a si. Sem reação, António vê-se rodeado de seis minúsculos e saltitantes seres que lhe envolvem as pernas roçando-se e chiando muito. Numa brutidão que as gentes solitárias e rudes de uma vida difícil que nunca deu tréguas nem descansos tem, afasta os cachorros com um pontapé que não foi para magoar. Ia a virar-lhes as costas quando o cão se plantou à sua frente. António deixou-se envolver pela cólera. Deveria ter respirado e pensado, não o fez, entrou num caminho sinuoso que leva a decisões ou irreversíveis ou a arrependimentos de culpas.

Quis enfrentar o animal, este cresceu mais ainda para ele, firmou-se bem no chão sinuoso, arreganhou os dentes e que caninos! No seu olhar de fera a dizer «se passares a linha, faço-te frente».

O clima ficou tenso, tanto que o cenário tomou nota disso: fecharam-se serrando-se, as copas das árvores, as ervas espigaram mais, o vento abanou as raízes de tudo, a terra escureceu, o céu carregou-se de um cinzento plúmbeo, assustador. Pôs-se a terra em suspenso é espera do desfecho entre um cão e um homem. Coisa impensável: dois seres que se amam tanto, nos limites de cometeram, na ebulição dos sangues e das entranhas, uma grande maldade, todos no fio da navalha.

No instante último, impossível de cronometrar por ser num instante

mili-milionésimo, o cão abandonou a eminência do confronto. Afastou-se e rodeou o velho, todos compreendendo o que se estava a passar, seguiram-no, deixando António ainda mais solitário que a solidão que trazia como pele que veste e é a única, não tem outra no roupeiro vazio. Olhou para o rebanho que não deu conta de nada: vegetais com patas. Não olhou para trás e o cão também não olhou para trás.

Voltou para casa com o orgulho ferido, uma raiva contida, a não dar parte de fraco a si mesmo. Nessa noite não ceou.

Nos dias que se seguiram António não deu conta do incidente aos amigos, mas estes no corropio parado duma aldeia sem gente nem bestas, chegaram às suas conclusões, até porque não se lembravam de ver um sem o outro, eram a projecção e a sombra, inseparáveis. Não lhe perguntaram nada, perceberam nas feições difíceis do rosto curtido do velho pastor, onde estava marcada a dor.

É por pequenos desentendimentos, minudências de pormenor, que muitas vezes se sobressalta o mundo, transformando o que seriam pequenos ecos inconsequentes em grandes ondas de choque que afogam a vida por onde passam e são imparáveis na destruição que causam.

António sentiu-se substituído, o Manchas quis oferecer-lhe um acrescento de família, um ânimo, uma alegria nova, que amaciasse a dureza dos dias sempre iguais.

Um não se compreendeu ao outro, ou outro não desculpou, os dois saíram a perder. Agora, é o jogo da paciência, quem aguenta mais, e por vezes estica-se tanto essa corda que ela parte: deixa-se de aguentar, dispensa-se, esquece-se, os vazios preenchem-se com novos nadas.

O Manchas foi viver para o terreno da alemã, uma excêntrica, uma naturalista, para ela tudo está bem, mas para o cão não, nasceu-lhe nas entranhas um remordimento, uma dor ácida, uma corrosão.

O Quim e o selos tentaram animar o amigo como puderam e sabiam: com chistes, dos picantes, histórias do antigamente quando foram protagonistas de alguma coisa, inventando brindes a isto e aquilo, a porem-no para cima. Mas não, ele cada vez mais se encolhia, parecia que estava a querer entrar pela terra adentro, fazer-se raízes, desaparecer.

 Nunca tinha estado naquele vale profundo. Gabava-se de conhecer de olhos fechados toda a serrania, de cor todos os sendeiros, saber onde está esta árvore, onde poisam os falcões peregrinos, as tocas dos coelhos, mas por motivos talvez do sobrenatural, nunca tinha estado nesse vale profundo.

Os cães foram os primeiros a dar o alerta, começaram todos a ladrar, os pequenotes a imitar os mais velhos, O Manchas pôs-se num estado de grande excitação. A Alemã continuou impassível e sereníssima, de pernas cruzadas, de olhos fechados a olhar certamente para dentro, que se fosse para fora, ver-se-iam uns belos olhos verde-água, tão cristalinos e puros como pequenas e redondas pedras preciosas, lapidadas na perfeição.

Junta-se o balir do rebanho, que vem na retaguarda, António à frente, como se estivesse distraído no caminho, mas não, ele sabia muito bem ao que vinha. Parou e levantou os olhos do chão. O cão, à sua frente abriu ainda mais os seus e num impulso que se esperava para um final harmonioso, salta para o dono lambendo-o carinhosamente no rosto gasto e por barbear há anos. António abraçou o companheiro e uma lágrima recôndita e muitíssimo salgada, fez lentamente o percurso do rosto, até cair na terra, com um estrondo que ninguém ouviu mas todos sentiram no estremeção, como um pequeno sismo localizado unicamente nessa precisa latitude e longitude, que desconhecemos, mas eles não.

Voltaram todos para casa, os cachorrinhos armados em pastores, sempre a rodearem as ovelhas e as cabras, beliscando os jarretes destas com pequenas mordidas dos seus dentes afiados, a quererem marcar territórios e domínios futuros, na brincadeira a aprenderem para serem grandes.

António entrou em triunfo na aldeia, o Quim, encostado, já ele mesmo um prolongamento da própria parede mal caiada do seu casebre, saudou-os com um menear subtil de cabeça.

Este pequeno mundo normalizou no índice de felicidade.

 

 

 

 


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