O dos CTT ainda não foi
referido, porque o momento dele só chega agora. Numa primeira impressão: um
homem que foi talhado para a conversa. Talhado seria, se alguém o tivesse
esculpido, não sendo assim, tendo nascido de parto normal da conjugação de uma
relação carnal que deu ânimo a uma fertilização que na posteridade viria a
desembocar em parto de ser humano, estreito e escorreito, ele fez-se a si
mesmo, moldou-se como barro, nas circunstâncias e acontecimentos, nas
experiências e dissabores, das pessoas com que se cruzou e descruzou, a acrescentar,
os créditos familiares, a que chamam herança genética. Toda essa licenciatura
deu-lhe para ser um bom conversador.
Sabemos que ele é arauto das
notícias, boas e más, a televisão ambulante, na aldeia de dois moradores não há
televisões. Radio sim, roufenho, com a antena partida desde que há lembrança da
sua existência e tanto o António como o Quim, só lhe dão uso aos domingos para
ouvirem o relato da bola: um do Benfica outro do Sporting. No calor das
partidas que eles ouvem e imaginam os jogadores, como eles serão de feições,
porque na realidade não lhes viram a cara, chamam-se um ao outro de todos os
nomes e meios-nomes, rubicundos, a parecer que vão rebentar, gritando o alto
que o folego lhes dá. No final perca quem perca ou ganhe o que tiver de ser,
bebem umas mines e cada um vai para casa e não tendo esposas vivas, fazem os
cães as vezes delas. Se vão zangados descarregam nos desgraçados.
O “Selo na testa”, assim lhe
chamam os aldeãos quando ele não está presente, é um homem nascido na cidade, que
passou toda a vida no campo. Praticamente só vai a casa dormir e arrepender-se
todos os dias de olhar para a Florinda e de ter casado com ela, que emulou depois das bodas, ou amulou, ou fez-se de mula, e nunca mais
deu pio. Entrincheirou-se na sua virgindade, e nem para culinária mostrou
préstimos, sendo que o das Encomendas Postais, casou com uma verdadeira mongas, não o merecia mas aconteceu-lhe
ser assim. Por isso é dormir a correr, ir ao posto carregar os alforges da Famel motorizada fidelíssima, quase
humana, e ala, por esses montes e vales, acima e abaixo, entregas da
correspondência e ir dando conta aos habitantes isolados, das andanças do mundo
e de outros temas de interesse. É que o Selos não sendo um enciclopédico é o
que mais próximo disso se pode arranjar num perfil de alguém que fez a quarta
classe, foi à tropa e fez por sorte a escola de cabos e com essa graduação, quase
a chegar a oficial, convenceu-se que era um iluminado. Ainda por cima sabedor
de coisas intelectuais, coisas de pessoas cultas, claro está, como ele. Tirando
essas manias das grandezas é um bom homem. Amigo do amigo. O seu maior defeito
é falar demasiado, e quando se é dessa natureza, diz-se o que não se deve, vai
tudo misturado, sai o que se sabe, o que não se sabe, e acrescenta-se a tudo
isso uma imaginação fértil dada a devaneios.
Não o conhecendo, dir-se-ia
que ele é um homem rude, mas basófias, um fala-barato. Mas não, ele é somente
um homem sem filtros e como as palavras lhe saem mais depressa que os
pensamentos e ele não consegue estar calado, ainda a ideia está nos seus
retoques finais na antecâmara dos lobos parietais, a ser balançada de para o
outro e já ele regurgita palavras, coladas ao cuspo, só por dizer que disse.
No dia do incêndio mal soube
nem foi a casa trocar de roupa: endireitou a Famel no caminho da aldeia dos amigos, a toda a brida, quem os
visse imaginaria um cavaleiro brioso esporando o seu corcel, que espumando,
galopa por esses montes acima, como se o tempo e a velocidade fossem um só, e
eles os seus domadores.
Vai ajudá-los a proteger os
seus pertences, aí se vê o coração que tem: fala-barato mas amigo do seu amigo.
Quando chegou a situação estava dominada. A aldeia estava a salvo, acalmava
agora das particularidades do dia. Encontrou os amigos, farruscos como carvão,
lenços na boca a lembrar cowboys de filme “b” americano.
- Então pessoal? Estou aqui
para resolver a situação. Avança o linguarudo.
- Oh Quim, olha que este ficou
gaseado. Deve ter sido do fumo da geringonça com rodas em que ele veio.
Traquitana ainda mais velha que o dono.
- Doutra coisa não foi, tem
estado um dia tão bonito, e despejado.- Arremata este.
- Se não for eu, vocês, mais
encostados à manjedoura que os burros que não merecem a comparação, ainda
deixam arder estes palácios todos.
- Arder? Arder como, se não se
vê chama nenhuma? Vês tu por acaso alguma?- diz o António, piscando o olho para
o Quim.
- No caminho isto parecia o
inferno. Terra queimada por todo o lado. – Assobia o carteiro.
- Inferno? Deve ser por causa
dos cornos do Quim, parece mesmo um chifrudo. – Desmancha-se o António.
- Estão a mofar. Isto tudo a
esvair-se e vocês ainda lhe encontram piada.
- Não te zangues homem,
estamos na reinação. É todos os anos a mesma coisa, atearem fogos na serra e
aqui ninguém nos acode, mas cá nos vamos resolvendo.
- Vocês deviam criar um
sistema de rega automática das casas da aldeia. Sei muito bem como isso se faz,
se quiserem posso comandar os trabalhos.
- Agora és engenheiro? Também percebes de sistemas de regas? –
pergunta o Quim.
- Eu não sou nenhum analfabeto
que mal sei fazer o meu nome, como vocês. Sou uma pessoa instruída.
- Pois, deves ser! – o
António.
- Sei isso e muito mais. Leio
jornais.
- És um lérias. Tens uma lábia
para dar e vender.- responde o Quim.
- Põe-se um homem em
desassossego, preocupado com vocês, podia estar de perna esticada na mesa a ver
a bola, e sou recebido com rodriguinhos e chalaças. A próxima vez que ardam
como no inferno.
- Não te zangues homem,
estamos a meter-nos contigo. É brincadeira. Vamos mas é comemorar a salvação da
nossa aldeia.
Encostaram-se à parede da casa
do Quim, e ali ficaram e o carteiro, um verdadeiro artista, não descansou
enquanto não lhes explicou com pormenor e virgula, o minucioso plano da
construção de um sistema de rega anti-incêndio de casas. Os outros ouviram-no ou
fingiram, habituados que estão desde sempre às lições de cátedra furada do
amigo, bom homem é certo, mas com uma palheta
interminável. Cada um tem os seus defeitos, o deste é falar demais.
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