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NOVELA RÚSTICA - IIII

 



O dos CTT ainda não foi referido, porque o momento dele só chega agora. Numa primeira impressão: um homem que foi talhado para a conversa. Talhado seria, se alguém o tivesse esculpido, não sendo assim, tendo nascido de parto normal da conjugação de uma relação carnal que deu ânimo a uma fertilização que na posteridade viria a desembocar em parto de ser humano, estreito e escorreito, ele fez-se a si mesmo, moldou-se como barro, nas circunstâncias e acontecimentos, nas experiências e dissabores, das pessoas com que se cruzou e descruzou, a acrescentar, os créditos familiares, a que chamam herança genética. Toda essa licenciatura deu-lhe para ser um bom conversador.

Sabemos que ele é arauto das notícias, boas e más, a televisão ambulante, na aldeia de dois moradores não há televisões. Radio sim, roufenho, com a antena partida desde que há lembrança da sua existência e tanto o António como o Quim, só lhe dão uso aos domingos para ouvirem o relato da bola: um do Benfica outro do Sporting. No calor das partidas que eles ouvem e imaginam os jogadores, como eles serão de feições, porque na realidade não lhes viram a cara, chamam-se um ao outro de todos os nomes e meios-nomes, rubicundos, a parecer que vão rebentar, gritando o alto que o folego lhes dá. No final perca quem perca ou ganhe o que tiver de ser, bebem umas mines e cada um vai para casa e não tendo esposas vivas, fazem os cães as vezes delas. Se vão zangados descarregam nos desgraçados.

O “Selo na testa”, assim lhe chamam os aldeãos quando ele não está presente, é um homem nascido na cidade, que passou toda a vida no campo. Praticamente só vai a casa dormir e arrepender-se todos os dias de olhar para a Florinda e de ter casado com ela, que emulou depois das bodas, ou amulou, ou fez-se de mula, e nunca mais deu pio. Entrincheirou-se na sua virgindade, e nem para culinária mostrou préstimos, sendo que o das Encomendas Postais, casou com uma verdadeira mongas, não o merecia mas aconteceu-lhe ser assim. Por isso é dormir a correr, ir ao posto carregar os alforges da Famel motorizada fidelíssima, quase humana, e ala, por esses montes e vales, acima e abaixo, entregas da correspondência e ir dando conta aos habitantes isolados, das andanças do mundo e de outros temas de interesse. É que o Selos não sendo um enciclopédico é o que mais próximo disso se pode arranjar num perfil de alguém que fez a quarta classe, foi à tropa e fez por sorte a escola de cabos e com essa graduação, quase a chegar a oficial, convenceu-se que era um iluminado. Ainda por cima sabedor de coisas intelectuais, coisas de pessoas cultas, claro está, como ele. Tirando essas manias das grandezas é um bom homem. Amigo do amigo. O seu maior defeito é falar demasiado, e quando se é dessa natureza, diz-se o que não se deve, vai tudo misturado, sai o que se sabe, o que não se sabe, e acrescenta-se a tudo isso uma imaginação fértil dada a devaneios.

Não o conhecendo, dir-se-ia que ele é um homem rude, mas basófias, um fala-barato. Mas não, ele é somente um homem sem filtros e como as palavras lhe saem mais depressa que os pensamentos e ele não consegue estar calado, ainda a ideia está nos seus retoques finais na antecâmara dos lobos parietais, a ser balançada de para o outro e já ele regurgita palavras, coladas ao cuspo, só por dizer que disse.

No dia do incêndio mal soube nem foi a casa trocar de roupa: endireitou a Famel no caminho da aldeia dos amigos, a toda a brida, quem os visse imaginaria um cavaleiro brioso esporando o seu corcel, que espumando, galopa por esses montes acima, como se o tempo e a velocidade fossem um só, e eles os seus domadores.

Vai ajudá-los a proteger os seus pertences, aí se vê o coração que tem: fala-barato mas amigo do seu amigo. Quando chegou a situação estava dominada. A aldeia estava a salvo, acalmava agora das particularidades do dia. Encontrou os amigos, farruscos como carvão, lenços na boca a lembrar cowboys de filme “b” americano.

- Então pessoal? Estou aqui para resolver a situação. Avança o linguarudo.

- Oh Quim, olha que este ficou gaseado. Deve ter sido do fumo da geringonça com rodas em que ele veio. Traquitana ainda mais velha que o dono.

- Doutra coisa não foi, tem estado um dia tão bonito, e despejado.- Arremata este.

- Se não for eu, vocês, mais encostados à manjedoura que os burros que não merecem a comparação, ainda deixam arder estes palácios todos.

- Arder? Arder como, se não se vê chama nenhuma? Vês tu por acaso alguma?- diz o António, piscando o olho para o Quim.

- No caminho isto parecia o inferno. Terra queimada por todo o lado. – Assobia o carteiro.

- Inferno? Deve ser por causa dos cornos do Quim, parece mesmo um chifrudo. – Desmancha-se o António.

- Estão a mofar. Isto tudo a esvair-se e vocês ainda lhe encontram piada.

- Não te zangues homem, estamos na reinação. É todos os anos a mesma coisa, atearem fogos na serra e aqui ninguém nos acode, mas cá nos vamos resolvendo.

- Vocês deviam criar um sistema de rega automática das casas da aldeia. Sei muito bem como isso se faz, se quiserem posso comandar os trabalhos.

- Agora és engenheiro?  Também percebes de sistemas de regas? – pergunta o Quim.

- Eu não sou nenhum analfabeto que mal sei fazer o meu nome, como vocês. Sou uma pessoa instruída.

- Pois, deves ser! – o António.

- Sei isso e muito mais. Leio jornais.

- És um lérias. Tens uma lábia para dar e vender.- responde o Quim.

- Põe-se um homem em desassossego, preocupado com vocês, podia estar de perna esticada na mesa a ver a bola, e sou recebido com rodriguinhos e chalaças. A próxima vez que ardam como no inferno.

- Não te zangues homem, estamos a meter-nos contigo. É brincadeira. Vamos mas é comemorar a salvação da nossa aldeia.

Encostaram-se à parede da casa do Quim, e ali ficaram e o carteiro, um verdadeiro artista, não descansou enquanto não lhes explicou com pormenor e virgula, o minucioso plano da construção de um sistema de rega anti-incêndio de casas. Os outros ouviram-no ou fingiram, habituados que estão desde sempre às lições de cátedra furada do amigo, bom homem é certo, mas com uma palheta interminável. Cada um tem os seus defeitos, o deste é falar demais.


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