Avançar para o conteúdo principal

DO CONFINAMENTO - TENHO UM AMIGO MELRO

 




Estou confinado a mim mesmo, não sei se aguento tanta intimidade.

Julgo ter tudo preparado, vi e revi não sei quantas vezes as listas das necessidades, mas nunca vivi uma situação destas pelo que não sei quais são as necessidades.

Fecho-me em casa, estou assustado, mas tento manter o decoro e a decência. Um sexagenário tem idade suficiente para ter decoro e decência, se bem não seja obrigatório e pode-se viver muito bem sem essas qualidades. Já vivi tempo suficiente, para ter adquirido um controlo decente sobre a minha cabeça. Mas nunca vivi isto, e o que mais desinquieta é o desconhecido. A escuridão é o que mais assusta e não tenho nenhuma lanterna à mão.

Fui apanhado de surpresa, apesar de ver todos os dias as notícias na televisão. Acontece sempre aos outros, não a nós. Nós vemos as notícias, até que somos nós que aparecemos nos jornais, e não estávamos à espera de nos defrontarmos com a nossa cara de espanto.

Até já tenho medo de respirar, mas se não o fizer morro, pelo que respiro com medo. Habituamo-nos a tudo, é uma questão de tempo.

Por razões que não vem para aqui, deixei a minha mulher num sítio, o meu filho noutro, a minha filha noutro ainda. Foi assim que aconteceu. Agora não nos podemos ver, a não ser virtualmente. Tornei-me um ás no domínio das redes sociais e o meu dedo polegar e o indicador, tornaram-se de repente fundamentais, nunca tinha dado nada de especial por eles. Eram como os outros. Admirava-me como os miúdos, de pequenos têm tanta mestria na utilização desses dedos. Agora compreendo. São mutações.

Tenho diante dos olhos o futuro para ler todos os livros que ainda não li, que estão à espera que os leve a ler, alguns há anos. Sempre a encontrar desculpas e deixá-los para trás na prateleira do esquecimento. Não tenho nada mais para fazer. Depois de promessas anos a fio, em aniversários, inícios de ano, saído de uma doença mais preocupante, após o primeiro de quatro divórcios, enfim, que iria ler alguns dos livros que os intelectuais usam para fazerem citações e demonstrarem a sua superior sabedoria, porque os leram (ou pensa-se que sim), apresenta-se-me agora esse momento. Vamos ver se valem as citações.

Não tenho mais nada com que me entreter, além de pensar, mas isso sempre fiz, é a actividade a que dedico mais tempo e levo-a muito a sério. Ouvi dizer a alguém que é o trabalho mais difícil. Concordo, não dá tréguas, estamos sempre ao serviço.

Pensar e observar as pessoas. Sou um observador profissional, daqueles que num jardim, numa esplanada, numa loja, pousa os olhos, basbaque, nalgo que me chama a atenção, e ali fico, suspenso no tempo, a olhar, olhar perdidamente. Até me chego a envergonhar. Claro que com a experiência toda que já levo da observação agora disfarço muito melhor, mas quando era miúdo, estava sempre a ser apanhado nas mais caricatas situações de indiscrição das vidas alheias. Chego até a considerar, vendo agora à distância do tempo que passou, que houve bastantes desses momentos que em vez de estar a viver a minha vida, estive de espectador na representação da vida dos outros. Como o fotógrafo dos casamentos.

 Após observar e saciar uma curiosidade crónica nessa doença oftalmológica, não me dou por totalmente satisfeito e vou logo construir uma história com os personagens e os ambientes observados. Invento tudo, do princípio ao fim: personalidades, linhas de caracter, amores e desamores, cenários, cores, odores, sons. Volto e revolto aos mesmos locais, para alimentar a minha história. É assim que ocupo o tempo em condições e circunstâncias normais.

Mas sou inócuo e creio que um pai razoável.

Neste momento só me tenho a mim como personagem. Conheço-me demasiado bem para me pôr a inventar histórias de mim mesmo, divorciei-me do espelho, já me diz pouco. A fase de narciso ficou para trás e foi efémera.

Agora não tenho ninguém para quem olhar. Vivo num andar alto de um prédio, se me puser à janela vejo os raros transeuntes e os veículos que circulam, distanciados de mim. Tenho uns binóculos.

Tiro à sorte o primeiro livro que vou começar a ler. Uso um método justo para a escolha ser imparcial. Numero todos os livros que não li e outros dos quais mal me lembro de ligar o título a quem os escreveu e ponho os papelinhos correspondentes com os números numa espécie de tômbola, que encontrei no quarto dos miúdos, muito provavelmente de um jogo de bingo. Arqueologias do passado.

Nem vos digo o que me saiu. Não, esse não pode ser. São muitos volumes. Levaria meses e não me vejo meses fechado. Concedo-me uma segunda tentativa. Calha-me um que já tentei ler não sei quantas vezes. Primeiro em casa, depois numa espreguiçadeira à beira de uma piscina nas férias, na praia, as ondas a baterem e eu a ficar cada vez mais entediado com o livro, em piqueniques que fazíamos porque gostamos. Pensei que o ambiente ajudava, mas não, nunca ultrapassei a barreira das cem páginas desse livro. Um dia passado as voltas no mesmo local e um narrador para mim, enfadonho. Como se diz para resolvermos o assunto: não agarrei o personagem.

Eu quero coisas que me alegrem, tristezas bastam as que temos (a minha avó era o que mais dizia. De resto não me ficou na memória do som da sua voz – estou a ouvi-la agora mesmo - outra expressão senão essa. Foi uma mulher feliz, sempre a sorrir, não perdia uma boa oportunidade de pregar uma boa e marota partida fosse a quem fosse. Depois sorria e as pessoas desculpavam).

Não estou a fazer batota, dou-me uma última tentativa. Sim, está bem, aceito. Um cavaleiro de velas e ventos. Adequa-se ao momento. Este sim, é um dos livros da humanidade.

É um livro volumoso, mas como não vou sair de casa e não tenho de o levar a passear, pode ser. Agora que penso nisso, realmente a quantidade de livros volumosos que são consideradas obras fundamentais da humanidade é relevante. O peso e o volume quero dizer.

Deve ser por isso que enviei um original meu, magro, frugal, uma espécie de ficção salpicada de apontamentos biográficos, com pouco mais de setenta páginas, e a editora, simpática e solícita, respondeu-me que o livro era pequeno demais para ser publicado. Compreendi que são precisas muitas palavras juntas, encandeando frases e mais frases, para se dizer alguma coisa de jeito e ser levado a sério. Menos de duzentos mil caracteres é lixo. Como sou contido, continuo a escutar música.

Um momento destes, vê-se pela capacidade de organização e planeamento. Faço uma agenda. Melhor, um guião. Apesar do tempo ser uma abstração e é bastante plausível que tenhamos sido nós a inventá-lo, é a abstração mais intrometida nas nossas vidas que conheço. Sempre presente, sempre a pressionar, a reivindicar caminho. Se queremos ficar parados no momento presente, não deixa. Sendo assim e como estamos obrigados a “matar o tempo”, então fiz uma agenda.

Na parte da manhã, após tomar sumo de limão e voltar para a cama mais vinte minutos, tempo para ele fazer o seu efeito purificador, escrevo um diário, iniciado precisamente no primeiro dia de recolhimento. Uma actividade que sei ser totalmente inútil, a que jamais, depois disto voltarei. O que vou mesmo querer, se me safar, é ver este momento menos glorioso da minha vida para trás das costas, um adeusinho até mais nunca e seguir com a vida para a frente.

Decidi que vou almoçar em casa como se estivesse a almoçar num restaurante. Assim e dada a falta de recursos humanos na minha casa, faço o papel de chefe, empregado de mesa e comensal. Tenho montado um teatro para me entreter. Andei anos a juntar bens alimentares pouco perecíveis (latas de conservas, de cornichons a pernas de pato, e chispalhada, pois claro) para o Armagedom, que eu, militante pessimista por natureza e feitio, achei que acabaria por chegar ainda nesta minha passagem por este sítio e assim estaria preparado para sobreviver a comer do bom e do melhor. Tinha razão, apesar de a minha mulher, o meu filho e a minha filha (e se calhar até o gato, o que não posso saber), amorosamente deixarem cair comentários sobre algumas excentricidades minhas do foro psico-comportamental. Não lhes liguei e fiz bem. Agora tenho comida suficiente.

Depois de almoçar fartamente no restaurante a que todos os dias dou um nome diferente, vejo nos meios de comunicação as estatísticas do dia, tiro as minhas conclusões, sempre diferentes das que me apresentam e encerro o assunto até ao dia seguinte. A tarde passo a ouvir música. Tenho uma simpática colecção de discos de todos os géneros musicais. Nesta minha etapa, deliro com as óperas e as grandes sinfonias.

Se ainda fosse a tempo, amanhã, aprenderei a tocar violoncelo, e já me estou mesmo a ver – abusador como sou na imaginação - a deixar toda a família, sem palavra na boca, maxilares pendentes, numa noite de consoada antes da chegada via aérea do pai natal, ouvindo-me tocar uma obra complexa e muito bela, abordando o meu violoncelo como se o tratasse por tu há muitos anos, tocando a suite nº 3 para violoncelo solo de Bach, e eles sem reação. Não imaginavam que o pai soubesse sequer distinguir uma nota musical, quanto mais tratar o violoncelo por tu. E donde tinha vindo esse violoncelo, que eles nunca tinham visto? Não é objecto que se esconda facilmente num apartamento de cem metros quadrados, cheio de livros até aos cocurutos das sancas dos tectos. Vou seguramente ter ainda tempo na minha vida para isso e mais, claro está porque faço muitas películas, filmes digo.

O fim do dia é um momento que levo muito a sério. Com solenidade mesmo. Chamem-lhe claro-escuro, lusco-fusco, crepúsculo, ocaso, momentos em que perco a extensão e o peso do tempo contado no relógio, o que desconfio ser isso a eternidade.

À noite, pelas 22h00, leio num podcast, trechos de livros que gosto, mais para dar embalo ao sono, do que para ser ouvido. Tenho três ouvintes: a minha mulher, a minha filha e o meu filho, que quando termino me mandam mensagens a dizer que adoraram, que leio muito bem e todas essas coisas que quem nos ama diz com amor. São simpáticos mas não sabem mentir.

 

 

Escrever um diário é muito mais difícil do que alguma vez poderia imaginar. Não me ajeito a escrever na cama, ganho contracturas musculares que depois nunca mais desaparecem. Dou-me bem com o bálsamo do dragão, o cheiro é que é um pouco intrusivo. Com a passagem dos dias, vou-me deixando ficar na cama até mais tarde. Olho para o tecto do quarto e não paro de pensar que no próximo verão tenho que o pintar. Está a ficar com marcas de humidade. Todos os dias de manhã penso nisto.

É tão difícil escrever um diário que comecei com uma intenção determinada de cumprir a agenda que tracei para a minha vida nos tempos do fim do mundo, e agora vejo que não tem absolutamente nenhum interesse escrever um diário seja do que for. E isso do fim do mundo também tem que se lhe diga.

Nunca terei vontade de ler um diário feito por mim, assinalando banalidades de um passado que já não existe. É daquelas coisas que me dá vergonha alheia, neste caso não alheia, mas própria, pessoal. Mal tenho tempo para me preparar no presente para o futuro, que está sempre em cima de nós, irritante, a exigir a nossa presença, quanto mais reler lamechices que escrevi ontem. Que estava mais em baixo, ou que estava mais em cima, o que isso importa?

Por estas razões, desisti ao décimo quarto dia de escrever o diário. Depois dessa data, não tenho oficialmente nada para dizer.

Começo a ficar cansado de ir todos os dias ao mesmo restaurante. Já sou demasiado íntimo do chefe, tratamo-nos por tu, ele já está a ter muitas intimidades, a falar da mulher, da sua situação económica, eu sem respostas para lhe dar. O empregado, conheço-lhe a vida para trás e para a frente, as suas misérias pessoais e os seus momentos de glória. De mim, enquanto cliente, não tenho nada a dizer. Há dias que tenho mais apetite do que outros. Estou farto de comer favas. Tinha uns sacos delas congeladas e agora, é dia sim, dia não. Gosto de beber vinho tinto.

A música não me cansa. Não me pede nada, não tenho que lhe dar nada. Ouço e disfruto. Toca-me e seduz-me. Agora que o que está para trás já se esqueceu, aqui para nós, não me parece que alguma vez venha a tocar violoncelo e dar um recital que fique na memória dos meus ouvintes familiares. Nem tenho violoncelo. Mas a música, mexe comigo, não fosse tão tarde e dedicava-me mesmo ao violoncelo.

Quanto ao lusco- fusco não tenho nada a dizer: todos os dias é uma actuação diferente. É o meu momento do dia.

 

 

Levo trinta e cinco dias a conviver comigo. Ainda falamos, mas já mal nos olhamos um ao outro. Cada um faz as suas coisas e deixamos a casa arrumada: pode alguém de repente tocar à porta, e não estamos prevenidos. Não falta muito e partimos para as agressões verbais. Abandonei definitivamente o diário, não tenho nada de novo a dizer a mim mesmo. Aderi, o que é muito mais cómodo, e contribuo para reanimar a economia local, aos serviços de take-away. Recebo os senhores emigrantes que fazem as entregas, por uma nesga de porta entreaberta, onde estico um braço com uma mão, a minha, enluvada e asséptica, com o dinheiro certo dentro de um saco de plástico, para não haver contactos. Não quero conversas, agradeço à pressa, eles também devem agradecer mas como têm máscara não entendo, e sinto-me imediatamente conspurcado. Da ponta dos pés à ponta da cabeça. Todos os dias é o mesmo.

Fecho a porta, dirijo-me à casa de banho onde tenho em estado de prontidão, uma irrepreensível linha de desinfecção. Um alguidar vermelho que era da roupa, com lixivia diluída em dez partes de água, para imersão dos produtos vindos do exterior. Se não se adequar ao caso, e neste caso a encomenda é uma pizza (não a posso imergir em água com lixivia), limpo cuidadosamente todas as superfícies com um pano embebido em álcool, que espero se mantenha acima dos 95% senão estou desgraçado.

De seguida deixo a entrega a secar, numa bancada, ao sol, porque ouvi na televisão que o sol mata os enviados do demo. A seguir, tiro as luvas, usando os procedimentos das autoridades de saúde, ou já não sei de quem o disse, deposito-as num contentor específico que converti de um caixote de pensos higiénicos da minha filha, e vou lavar, igualmente com lixivia, o hall de entrada do meu apartamento. Já tantas vezes o lavei que o chão de tábuas corridas envernizadas que tanto apreciava tem vindo a mudar de cor, e perdeu o lustro. Posto isto, lavo as mãos durante pelo menos trinta segundos, desinfecto com o álcool que espero se mantenha nos 95% como já vos disse, seco as mãos numa toalha só para esse efeito e para meu uso pessoal (neste caso é consensual porque não há mais ninguém em casa senão eu) e sento-me na sala cansadíssimo, esgotado mesmo.

 Com toda está alucinante azáfama, ou perdi a vontade comer, ou como com a sensação de que devia levar à boca os pedaços de pizza com uma técnica que deveria ter desenvolvido antes e não o fiz, de a levar à boca em contenção do processo inspirativo. Se não respirar não ingiro o dito, disfarçado na comida. É esta a filosofia que agora me guia. Estarei a ficar obcecado com algo? Não estou bem a ver.

Estou cansado de ouvir música clássica. Até o Cat Stevens e perdoando-lhe o facto de se ter vertido ao islamismo religião pela qual nutro – assim como a todas as outras – grande consideração e estima, já resgatei para me diminuir a urticária deste tédio. Gosto muito e ouço vezes sem conta aquela do “Morning has broken”. Hoje, confesso-o abertamente, até me é agradável ouvir o José Cid, e mais, sinto-me vivo e remexido ao som das suas boas músicas de antigamente. Quando isto acabar irei assistir a um concerto seu e vou dançar loucamente. Estou a brincar, não vai haver concertos tão cedo.

Do claro-escuro dos fins de dia onde parece que a ingenuidade do mundo se abate sobre todos e o silêncio e a paz são o meu conforto, não abdico. Todos os dias, invariável que esteja o meu humor, sento-me defronte da janela do meu quarto, debruço-me ostensivamente nela, e olho. Se fosse há não muitos anos, os suficientes para ter hoje uma saudade imensa, piegas mesmo, sentava-me debruçado na janela com um cachimbo na boca, libertando baforadas de perfumes e aromas subtis e exóticos, que os imagino tão bem que me apetecia esse prazer, e munido do conforto e a protecção desse amigo companheiro, encararia o crepúsculo com uma sensibilidade ainda maior, mais religiosa.

Não sei se é das volutas de fumo de um cachimbo, mas fumar aproximava-me das alturas. Vou com elas. Deixei de fumar, deixei de ter essa experiência quase mística, agora contento-me em ser ateu.

É neste momento de despedida do dia que me balanço, faço o papel de eu e eu, dois em um, ainda assim necessários para se manter uma conversa acessa. E falamos. Longamente, sem pressa nas palavras, usamos as que melhores temos, para falar que se fale bem. Há palavras que só elas, encerram em si uma cosmogonia. São as primordiais. Por exemplo, “Amor”. Falamos das questões do dia, de coisas pessoais, trocamos confidências, íntimas se for necessário, somos críticos um do outro. Nunca nos mandamos à merda porque temos por princípio não pronunciar asneiras em público. Estando à janela, podem ouvir-nos.

Ainda passou tão pouco tempo mas parece-me já tanto, nesta prisão sem chave na fechadura. Aqui debruçado, começo a reinventar o cheiro dos limões e dos verdes, a imaginar de memória os cheiros das flores muitas, dou uma enorme importância ao labutar das abelhas, proibidas que estão por ordem superior de confinar. Sem elas, não temos mundo. Sem nós, haverá outros.

Estarei já demente e não me dei conta? Talvez, nada importa. Gosto de ter uma boa conversa comigo e cada um sabe de si.

Depois deste momento, recolho e vou ler para o éter para os meus três ouvintes fiéis, trechos de livros que gosto. Nas redes já inventaram tudo. Ocupações novas, ocupações velhas vestidas de novas, grupos de solidariedade, grupos de costureiras de máscaras com emblemas dos clubes de futebol, tutoriais para fazer pão-de-ló de Ovar e gorros para a cabeça. Eu, como não sei fazer mais nada senão observar e ler, leio.

Depois disso, durmo com a ajuda de um comprimido que eu cá sei. Adoro sonhar. É das minhas actividades cerebrais preferidas. Dou-me todo aos sonhos e às vezes tenho sorte, sonho-os bons e triunfais.

 

 

Passou praticamente mais um dia, já não sei a quantos estou, quantos dias certos passaram, isso não importa para nada e não tenho nada a dizer. Cumpri a agenda, é um automatismo, e começo já a ouvir com algum distanciamento os tons de voz dos meus íntimos, como se estivessem a afastar, pouco a pouco, um volume a diminuir, a escapar-se lentamente. O WhatsApp é provavelmente das melhores invenções do mundo. Mas ainda nos falta o cheiro, o tacto, falta-nos sempre qualquer coisa, e é fundamental.

Debruço-me no parapeito da minha janela e observo o descerrar do dia. Passam poucos carros numa rua antes cheia de movimentos e ruídos de caos. Nos primeiros dias estranhei o silêncio, agora, não passo sem ele. O azul do céu ou porque quero forçar uma nota romantizada ou porque é mesmo assim e antes olhava menos para ele, apresenta-se num azul mais lavado, diáfano é uma palavra bonita, não fosse esse um qualificativo dos deuses e o céu é só natureza.

Tenho diante de mim um prédio onde vivem pessoas como eu. Vejo-os vagamente em jogos de sombra-luz passando em segundo plano, atrás das janelas. Nunca lhe contorno os rostos, nem os olhos, nem a boca. Sei que sei pessoas, não são fantasmas, sei que já nem vejo bem. Em espaços de tempo casuais, um rosto arrima-se, olha para baixo, para a rua, e recolhe-se seguro de que não viu nada que o preocupasse. Está tudo na mesma. Noutra janela de outro andar, há uma criança, uma menina, ainda a começar o folego de viver, cheia de energia portanto. Já dei com ela aos saltos no sofá branco da sala que consigo ver deste lado da minha barricada. Quase todos os dias, a mãe desta menina cola cartolinas recortadas com figuras de animais, e coloridas, na janela. Divirto-me a adivinhar que animais são, já que os vejo de costas. Fora esse movimento de vida, não vejo mais ninguém. Só um gato. Coloca-se na posição esfíngica de gato, horas perdidas, não sei se de olhos fechados se abertos, encostado ao vidro da janela. Cumpre a função de gato. Nada a dizer. Talvez nada o perturbe, é um gato sábio. Já gostei de ser gato, mas não pude. Condenado a ser homem.

Quando iniciei este retiro, nos primeiros dias quando se sentia profunda a ausência dos sons a que nos habituamos numa rua de uma cidade, achei que estava a ouvir, ou a sonhar, o chilreio efusivo de pássaros, sons de infância nesta mesma casa, quem vêm colados às recordações. Podia ser um só, não sei. Afinal era verdade. Dei por ele. Por coincidência ou não, posa no umbral do telhado do prédio onde vive o gato e a menina e todos os seus e os outros que lhes são vizinhos. E ali se deixa estar, piando de forma afinada, pássaro de si, peito inchado. É preto e tem um bico que talvez seja alaranjado. Creio ser um melro. Espero não o estar a ofender dando-lhe uma identidade que não é a sua. Vou confirmar no Google, agora não.

Quando se abatem as cortinas e as luzes do sol se apagam, no acto final das representações do dia, o pássaro voa e vai não sei para onde, talvez outro telhado, talvez procurar comida, talvez mesmo enamorar-se, por aí, nas suas asas tem toda a liberdade do mundo e faz bem em aproveitar as oportunidades.

Também eu saio de cena, e aproveito as minhas oportunidades para usufruir as paisagens inóspitas ou familiares, todas elas belas do meu pequeno mundo, resumido à geografia do meu apartamento, num terceiro andar de uma cidade qualquer que não interessa o nome. Tenho a vantagem de o ter explorado palmo a palmo, cartografei cantos e recantos, não tenho nenhum risco de me vir a perder em casa, o meu pequeno mundo. Se isso acontecesse, estando as coisas como estão, quem me viria resgatar?

No dia seguinte, à mesma hora, a do lusco-fusco já se sabe, ocupamos os nossos lugares na harmonia das coisas. Eu cá, ele lá. Tenho para mim, que já nos conhecemos. Distingo-o dos outros melros, ele distingue-me a mim dos outros humanos. É pedir muito de um pássaro livre e de um homem em reclusão, que se reconheçam um a outro, mas só eu e ele é que sabemos a intimidade que temos. Temos coisas em comum: partilhamos o mesmo prazer suavemente tristonho de olhar para o céu, todos os dias quando se fecha o dia e se apresenta noite, pensando cada um as suas coisas, ou não, nem sequer pensando, deixando-nos estar, por ali, a refrescar energias, dando valor à brisa que corre do mar, a duzentos metros de nós, escondido pela feiura de outros prédios.

 

Mês não sei quantos.

Tenho saudades de várias coisas. De algumas pessoas, de alguns conhecidos, de passear sem satisfações a ninguém, deixando as pernas decidirem das passadas que dão. Gostaria de ter um cão, porque gosto dos cães.

Passados os dias, vivo uma vida nova, estou melhor em casa do que fora. Tenho tudo o que preciso: os livros, a música, o whatsApp e o meu amigo melro. Visitamo-nos diariamente e falamos muito, pomo-nos a par dos acertos do mundo, coisas nossas.

Os meus estão bem, lá fora o mundo segue as suas rotinas. Aqui para nós, não aconteceu nada de especial no mundo. Só nós demos conta disso, os outros, seguem com a normalidade própria as leis da natureza, da sobrevivência, da procriação. Só em nós se instalou um medo insidioso e invisível, que nos obriga a repensar a organização das coisas nossas.

Amanhã, almoço chez moi meme, ouvirei a sinfonia número 2 de Mahler, “Ressureição”, na voz fascinante de Elisabeth Schwarzkopf conduzida por Otto Klemperer. No final do dia, quando tudo estiver pronto para os instantes fugidios do claro-escuro, o melro e eu, cada um no seu poleiro, daremos as boas vindas à noite, e despedimo-nos solenemente do dia que termina. Depois, vamos às nossas vidas, não sem que antes, enviemos os nossos cumprimentos às famílias de cada um. A do melro, e a minha.

Antes de isso acontecer tenho uma conversa séria com o melro.

-Como estamos?

-Não me queixo.

-Pudera és livre. Voas para onde queres.

- Se tu quiseres também.

- Como assim, se eu quiser!?

- É uma questão de perspectiva.

- O quê?

- Tudo.

- A minha perspectiva não vai mais longe do que os limites da moldura desta janela, onde estou debruçado.

Raio do pássaro, parece que está a gozar-me.

- A liberdade é uma disciplina. Não se é livre por onde se quiser. É até onde se quer ir e esses limites são individuais.

- És pássaro, falas comigo, és filósofo e como é que depois vou dizer aos meus filhos que andei a falar com um pássaro que meu deu conselhos sobre a liberdade?

- Eles não precisam de saber que somos amigos. E não dou conselhos a ninguém.

- De acordo, então diz-me tu onde me leva a minha liberdade.

- Nas tuas condições actuais, a tua liberdade é o espaço da tua casa e se o vires de uma forma criativa, podes considerar que tens uma imensa liberdade. Comparando claro está com outros que dispõem de um espaço muito mais reduzido.

- Nisso tens razão.

- Dou-te o meu exemplo. De que me serve voar todas as distâncias que me apetecer, se não encontro outros pássaros com que me entreter, somos cada vez menos, e só dou de caras, nos beirais dos telhados onde tomo decisões sobre os próximos trajectos, com indivíduos como tu, cabisbaixos porque não podem sair à rua?

- Não é uma liberdade muito alegre, não achas?

- Tens razão. Também não era necessário essa do indivíduo. Pensei que já nos conhecíamos. Não qualificavas e pronto.

- Desculpa, saiu-me.

- Vamos fazer uma coisa, eu tenho todo o tempo do mundo. Tu dizes-me onde gostarias de ir, e eu voo por ti, olho por ti, memorizo por ti e depois venho contar-te.

- Se o fizeres fico-te muito agradecido. Parece-me perfeito.

- Qual é então o primeiro destino que queres revisitar?

- Gostava de rever o mar e a sua extensão a perder de vista.

- Vou a caminho.

 

A partir desse dia, que foi um destes dias, mandei tudo às ortigas. Até já deixei de os contar. O diário, já tinha ido. Dispensei todos os serviços de restauração. A vida dos restaurantes é cara e os funcionários são gente metediça, sempre a saberem das nossas coisas e contarem as deles, como se tivesse algum interesse. Da música – já andava a sentir-me confortável com hard-rock, a abanar a cabeça como se ainda tivesse cabelo, figuras patéticas. A repetir dez vezes seguidas as canções – vendi as colunas no OLX, deixei-as à porta de casa, mas pagaram antes. Fiquei com o amplificador, tenho-lhe apego, mas como este não toca sem colunas é como se não o tivesse. O podcast secava-me a garganta e não parece que a minha voz tenha um futuro radiofónico. Talvez não tenha escolhido os livros certos. Antes disso tudo ainda está o violoncelo.

O melro acabou por se revelar um excelente retórico. Nunca imaginei que um pássaro falasse tão bem. Peguei-me às descrições dos lugares que ele começou a sobrevoar a meu pedido. Considero neste momento que o melro é muito melhor observador do que eu alguma vez fui. E tem um jeito natural para montar as histórias, fazer rodriguinhos, torneá-las a meu gosto. Se pudesse beijava-o.

Passei então a ficar o dia inteiro, ansioso e irrequieto como um menino à espera de um doce, da recompensa, debruçado à janela à espera da chegada do melro. A sua descrição dos locais por onde voa, passaram a ser os novos roteiros da minha vida.

Sinto-me preenchido, realizado, concluído. Não preciso mais de sair à rua, tenho a rua dentro de mim.

Entretanto, enquanto ele não se anuncia a contar as aventuras de hoje, em frente, do outro lado, numa janela do terceiro andar do prédio cor-de-rosa onde viveu uma ex-namorada minha tínhamos onze anos e treinámos exaustivamente os primeiros beijos na boca, vai quase para cinquenta, e hoje já não a posso beijar na boca a ela nem à minha legitima mulher, o gato amarelo continua impávido e sereníssimo na sua posição de esfinge egípcia. Não sei se olha para mim, e o que pensará ele disto tudo.

Estou a ponderar seriamente convidar a mulher e os miúdos para virem cá jantar. Tenho uma novidade importante para lhes dar. Talvez se consiga uma data. Cada um refez as suas vidas. O que me preocupa é a mesa ser pequena e não estou a ver como vamos comer com o pano na boca. Talvez seja melhor virem para um sunset drink. A palhinha simplifica muito a vida das pessoas.

Venham para o que vierem, tomei uma decisão muito importante. Ponderei e ponderei, e não tenho a mais pequena dúvida. No próximo natal, via qualquer destas vias digitais disponíveis, vou-lhes tocar uma outra suite para violoncelo de Bach.

O violoncelo, mexe comigo! Será que entregam ao domicílio?


Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,