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NOVELA RÚSTICA- FESTAS DO VERÃO

 




As festas da aldeia são no mês de Agosto. Apesar de só contar com dois habitantes no activo, dois canídeos mal-humorados, um pássaro, que era pássara e fugiu com o namorado, um rebanho curto de cabeças, e um ror de fantasmas (que se calcula que existam) que não se veem e daí não os podermos contar, vem sempre alguém de fora para compor a festa – o selo na testa certamente -, alguns poucos emigrantes na Suíça e na França; a autoridade eclesiástica para dirigir a procissão de uma dúzia mal medida de almas quase penadas; a autoridade civil, o Presidente da Junta, na visita anual que faz à aldeia; e por fim que vai cansativa a enumeração de presenças, a autoridade militar, no corpo e na pele do primeiro cabo Adalberto Campos, em fatiota de gala, com galonas verdes porque não foi mais longe, montado numa esplêndida motorizada de muita cilindrada e com luzes pisca-pisca azuis e uma buzina a entoar cânticos celestinos (desafinados e estridentes é certo, mas ainda assim, de uma dimensão sinfónica).

Como todos os anos há um incêndio que ronda a aldeia, e este ano antecipou-se, os caminhos ficaram naturalmente limpos e desimpedidos, poupando-se bastante em suores e energias no desbaste das ervas intrusivas, e como a aldeia fica num alto, com o caminho assim desimpedido, parece que se vai para a morada eterna, o paraíso, o shangri-la, tal a sensação que dá, vê-la assim ao longe, como que a flutuar em nuvens brancas e puras.

O António e o Quim ficam com mais vagares para ornamentos e gaitadas. São eles a comissão de festas e sucedem-se na presidência, um ao outro, numa sequência que só será quebrada quando um bater a bota, ficando o que resta automaticamente nomeado como presidente do futuro.

É uma estrafega, cansa muito, não tanto do que se exige ao corpo, mas de pensar na coisa, na organização, é muita obra ao mesmo tempo e confunde por ser muito assunto.

O António é um fura-pasto, velho mas ainda pleno de energia, agora o Quim é um feniscadinho, um palito, só lhe dá a força para levar o gargalo da mine à boca, ou então o sininho de medronho, que com os que bebe, é mais uma sinfonia diária de carrilhões: Mafra trasladou-se para uma aldeia perdida na serra algarvia.

É este o cartaz das festividades:

Sábado pela tardinha, recepção das entidades oficiais no largo da aldeia seguido de discurso que ninguém vai ouvir nem está interessado, nem o próprio que o dita por obrigação e inerência do cargo camarário que ocupa; de seguida foguetório com bombonas a anunciar em ecos que ecoam nos rebordos dos montes e das colinas da serra, o início dos festejos; pela noite, depois dos petiscos e de uma hidratação adequada aos calores que se fazem sentir nesta altura do ano, a sarrafusca, um dos pontos altos, o bailarico devidamente embalado pelas canções melosas e quentes de Marante, o rei genuíno da música popular; fecha o dia com mais lançamento de artifícios, desta vez sincronizados a fazerem um belo efeito de luz e som recortado nos céus que se esperam límpidos.

No domingo de manhã, mais bombonas; e antes do almoço a procissão. Como já se referiu abrilhantadas por todas as entidades que estejam e a vir; segue-se o churrasco no largo da aldeia, mas cada um paga o seu. A festa termina quando o último dos festivaleiros abandonar o recinto, o que pode ser tardio se o mesmo se encontrar num estado alcoólico de abstracção do real.

É um frenesim, António anda de um lado para o outro nos preparativos, o dos CTT ajuda-o. O Quim, continua encostado à porta de casa, tem de haver alguém que pense e para se pensar convenientemente não se pode abanar muito, sentado e quedo, este ano é ele o presidente da comissão organizadora: ele pensa os outros executam.

O dos correios disse-lhes que era bonito e que tinha visto na televisão e eles decidiram forrar o tecto da rua onde passa a procissão, com papelotes coloridos, em ziguezague, uma alagartada. O António, para esse efeito, operacionalizou uma linha de montagem: o Manchas, deitado ao seu lado, com uma língua de palmo e meio, apõe a saliva nos papelotes e o António cola os dois lados do papel suspenso na corda. O cão do Quim desde que foi confrontado e se revelou a sua maciez, deixou de participar em eventos sociais.

Todos os anos de há anos que já nem contam, são poucos os que aparecem, é uma tristeza que se faz fingida de alegria, os poucos a verem-se poucos e a disfarçarem que enchem o terreiro de boas disposições.

Se fosse pelo Quim a festa já não se fazia, mas o António, preso a uma nostalgia crónica que lhe afecta os discernimentos, convence-se a si próprio que este ano é que vai ser, vão voltar os tempos antigos, quando jovens e muitos jovens que habitavam uma aldeia que já não existe assim, viviam esses dias, os dias das suas vidas, e tinham razão, mas na altura não sabiam, que esses foram mesmos os dias das suas vidas. Depois, foi o calendário a passar.

António convencia-se, e nas vésperas, quase um mês antes, não fazia outra coisa senão de falar no filho, e no netinho, que era este ano que vinham, que não diziam nada para fazer a surpresa. Os amigos: o Quim e o Selos olhavam um para o outro, embaciados pelas cataratas, ou pela opacidade de olhos que estão tristes, e compreendiam-se: o filho e o netinho não viriam, mas eles tinham na obrigação do contracto de amigos que celebraram assinando fidelidades incondicionais, a obrigação de alimentar esse sonho, e animando-se, brindavam à família, aos que estão longe, aos que estão quase a chegar mas não vão mais chegar.

Vai começar a festa, António o Quim, os canzarrões, a pássara Xica não que se escapou, o rebanho também não que não é dado a essas coisas, as autoridades todas e mais alguma, todos tomaram banho e vestiram roupa ajeitada à ocasião. Vão começar os festejos, que rebente a primeira bombona, faça-se um brinde à comissão organizadora, recebam-se as entidades, e que chegue a família do António, que ainda não chegou mas vai chegar, só na sua vontade, sabe-se lá o amargo que lhe vai dentro, a disfarçar-se de forte e contente por fora. Venha daí mais um ano.

Que puta de vida esta, não se poder dar as voltas ao tempo, nem com os argumentos do amor.


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