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NOVELA RÚSTICA - MÁ NOTICIA

 



António apaziguou. Caiu em si. O seu tempo de eternidade, de herói do Olimpo humano, esgotou-se, desvaneceu sem que se desse conta, algures numa data que marcou a sua transição de adolescente a adulto. De todos os sonhos e todas as possibilidades, reduziu-se a sobreviver, cumprindo pelas normas, as regras desse jogo absolutamente desinteressante e ansioso, de levar a vida por ondas calmas mas entediantes, até ao destino final. Uma vida sem glória, uma banalidade.

Casou, procriou, trabalhou que nem um desgraçado; viu a mulher morrer prematuramente, continuou a trabalhar que nem a um cão se deseja; os filhos emigraram e fizeram novas vidas num novo país, um novo mundo - agora o deles - trabalhou ainda com menos energia mas ainda assim, um escravo; e deu de costados e o corpo por inteiro, em velho, a arrastar-se com o trabalho, o infindável trabalho, para a bucha, para se entreter – não tem mais nada com que se entreter -, até que morra, incógnito, anónimo, redundante, definitivamente prescindível, se dúvidas disso houvesse.

Os amigos, o Quim e o José dos selos, são quase etéreos, esvanecidos, de contornos imprecisos, cada vez menos físicos, irreais poderia dizer-se, não fossem reais por continuarem vivos. Vive agora num momento da vida em que não há tristeza nem alegria,  um banho-maria, um pecado capital que se comete contra a própria vida, que deveria ser fogueteada nos limites, a ver onde chega, o longe que vai, o que dá, quando quebra, ou não.

Se fosse homem de pensamentos – que os tem como toda a gente, mas não valoriza – poderia ser encaminhado a um muro imaginário das suas lamentações, ou então a um julgamento pessoal das pequenas ou grandes realizações - disso poderia resultar uma melancolia, ou, sendo o contrário, um arrebatamento da alma. Mas não, ele não faz balanços e tem a memória dos peixes: dois segundos após, o pensamento pensado, desaparece do ecrã, e passa para outro, que também não vai valorizar.

Pode-se claro dizer que ele tem saudades do filho e do netinho que mal conhece, mas afastados que estão há alguns anos, o próprio afastamento foi-lhe borrando as feições do filho, a voz do filho, os jeitos da linguagem do seu corpo, o cheiro dele. Vê-o agora ao longe, cada vez mais longe, na galeria das recordações turvas. Por vezes, num pico súbito de saudade, entristece e macambúzia, o que logo passa.

Talvez seja bom ele ser assim: a desvalorizar o sentimento, talvez seja a fórmula mágica da solidão que se aguenta, porque precisamente não se pensa.

 António teve que baixar à cidade, ao médico, mija-se em pinga-pinga. Aos bocadinhos, dia e noite nisto. Ele não queria, mas o José dos Selos, assustou-o, conseguiu sentá-lo na famel, que se fosse burra não fazia o serviço, aquele peso todo em cima, dois obesos: o Selos e o amigo. Lá foram os dois, à consulta.

A cidade é pequena, mas as dimensões dependem dos olhos de quem a vê. Para ele é um nunca mais acabar de casas todas em fila, umas a seguir a outras, com mais nas traseiras e na frente, um não acabar de ruas e ruelas, e gente, frenética, de um lado para o outro, provavelmente para lado nenhum, só porque sim, porque o movimento casa com a cidade, são inseparáveis.

O Selos deixou-o no consultório e combinaram encontrar-se ao fim do dia no jardim do coreto.

António encarou com muita dificuldade e relutância, decoro íntimo, a ideia proposta pelo médico de lhe fazer um exame digital invasivo.  A custo foi convencido e depois sentiu-se envergonhado, pelo que a partir desse momento menos glorioso da sua vida, não olhou mais o médico, baixou a cabeça e entrou em modo de murmúrio. Saiu de lá com a ideia vaga de que tinha uma coisa, tipo bolota, que nem sabia que tinha, chamada próstata, a que se deveria prestar atenção. Deveria voltar muito em breve. Vai pensar nesse assunto.

Como combinado com o amigo, sentou-se num banco de traves corridas, pintado a verde, no pequeno largo onde estaciona o coreto, pequeno mas simpático e colorido. Está de frente para ele, este vazio, de gente, de animação, de música, a sua razão de ser. No lado oposto, também num banco de traves pintadas a verde, uma senhora abana com afã um leque negro, rendilhado. António reparou na senhora, porque não tinha mais nada que fazer, e na realidade àquela hora, o jardim estava deserto de pessoas e pássaros, contando somente as suas almas como presentes.

Olhou uma vez e outra e deu-se, basbaque, a olhar hipnotizado talvez pelos movimentos ritmados do leque espanhol.

 - Como está? Está posto um belo fim de tarde.

António não fala assim, como se fosse poesia. Mas o que ele diz, nesta ocasião, tem essa intenção.

Percebemos que ele se levantou e traçou em passos rápidos a diagonal que o ligou ao outro lado, onde a senhora abana um leque exuberante, por ser rendilhado e nada mais.

Rosa, interrompeu o movimento monótono do leque, destapando o rosto e uns olhos pequeninos no entanto penetrantes, negro azeviche profundo, embateram com os de António.

- Neste jardim, os fins de dia são sempre belos.

- Que sorte têm os seus frequentadores.

- São poucos, as pessoas na cidade, mesmo esta que é provinciana, valorizam pouco os jardins. Só os velhos e as crianças, mas estas só vêm pelas mãos dos adultos, e os velhos já não são de cá, estão em trânsito.

- É uma pena. Onde eu vivo é tudo jardim. Nunca me perguntei se os fins de tarde, ou o começo dos dias eram belos ou outra coisa qualquer.

- Como assim?

- São como são. E eu estou habituado a eles sem fazer perguntas. Gosto de todos, independentemente de como começam ou acabam.

- Tem muita sorte. Os poucos que frequentamos os jardins com o propósito de assistir a um fim de dia privilegiado, na melhor das sortes vivemos esse momento de plenitude por escassos instantes, enquanto o senhor tem a plenitude ao seu dispor durante todo o dia.

- António Bezaranha.

- Rosa Bela-Luísa.

- A senhora diz coisas muitos competentes.

- Digo sempre o que sinto.

- Faz bem, dá-se ao respeito.

António desusado de empregar tanta palavra em pouco tempo, estava a ficar ofegante. Dispôs de quase todo o léxico que possuía e ainda não tinha dito praticamente nada. É para situações destas que as palavras servem.

- O António é daqui?

- Não, sou da serra.

- Como eu gosto do campo. Se pudesse vivia lá.

- Basta querer. Há muito espaço para ser preenchido.

- Já vou tarde.

- Nunca é tarde para experimentar. – O António estava inspirado, cheio de lamiré.

- Pois, mas precisava de conhecer o manual da vida no campo. Nunca o folheei sequer.

- E tenho em conta que apesar dessa beleza toda de que fala, a vida no campo é rude, dura, implacável.

- É verdade tudo isso, mas os momentos de beleza, pagam com créditos dobrados as privações.

- Gostaria de continuar esta conversa, mas tenho que ir.

- Tenho pena que não fique um bocado mais.

- Talvez numa próxima.

- Talvez.

Despediram-se como se conheceram. Da Rosa não sabemos o que lhe virá a acontecer, ninguém sabe, nem sequer se é gente ou fantasma, mas o António ficou alvoriado. Teve um retrocesso, um andar para trás, umas arrecuas, voltou aos seus dezassete anos, palpitantes, com o reservatório atestado de amor para dar.

Nisto que se está a pôr interessante e não é que acorda espantado? Onde está? Adormeceu? “Que sítio é este que não é o meu sítio?” É um jardim e é quase noite.

Queres ver que o cabeça de azinho do Selos na testa, se esqueceu de mim? E os animais? Tenho que tratar deles.”

“E doí-me a cabeça.”

“Eu a pensar que estava a fazer meia-azul, era tudo nítido, tão real, uma mulher de sonho, até estava a estranhar de me tocar uma assim, que nunca me tocou senão uma, a mãe dos meus, e afinal estava a coser batata-doce. Não faço outra coisa se não ressonar.”

Compôs-se, saltou-lhe à cabeça, num relampejo, a bolota que tem um nome que o assusta.

O Selos entretanto apareceu. O pastor carregou-lhe forte e feio, foi quem teve à mão para descarregar as agonias do dia, depois calou-se: a motorizada guinchava mais alto do que ele.

A noite tinha-se posto noite. O Manchas, com um dos filhos, a dar os ares todos do pai, esperavam-no à entrada da aldeia.

- Até amanhã António.

- Diz que é a próstata. Estou arrumado.

O Selos despachou-se dali nas horas de um cabrão. Fingiu que não ouviu.

Cão e filho, lamberam fielmente o dono, que se tranquilizou.




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