A Xica é um chapim-azul.
Contingências da sua vida viu-se abandonada pela progenitora quando ainda não
sabia voar. Percebendo que a mãe não viria mais, num acto suicida mas de muita
coragem, abeirou-se do ninho, fechou os olhos que ainda mal abriam, respirou
fundo, susteve o pouco ar que lhe cabia nos pulmões e atirou-se para o
desconhecido. Por atavismos próprios bateu freneticamente as asas, mas ainda
não as tinha. Ou melhor, ainda não as tinha suficientemente formadas e fortes
para a susterem e poder voar. A Chapim-azul veio a cair redonda aos pés da
árvore e por sorte dos dados da natureza, sobreviveu. Sobreviveu ferida e
frágil. Incapacitada de se deslocar, piou em pedido de socorro.
O Quim era um caçador exímio,
mas era um caçador com princípios. Não matava por matar, respeitava a natureza.
No caminho que naquele dia o levou por ali, viu a pequena Chapim-azul e por
compaixão, ajoelhou-se, pousou a arma no tronco da árvore, e gentilmente, com
uma sensibilidade que não se lhe conhecia naquelas mãos rudes, usadas, brutas,
aninhou o passarinho num côncavo de sua mão. Vendo que estava ferida e
assustada, pô-la no bolso quente da casaca e levou-a para casa.
Ele mesmo construiu uma gaiola,
rudimentar mas com o seu encanto de objecto artesanal, que pendurou, achado que
foi por cálculo visual, o exacto meio da ombreira da porta de sua casa. A
Chapim-Azul recuperou, fez-se mulher (por ser fêmea) e foi encantando os dias
do velho Quim, piando belas melodias de pássaros. À noite o dono, recolhia-a
para a protecção da cozinha, e tapava a gaiola com um retalho de uma manta,
para que ela, a Chapim, pudesse descansar.
Passou tempo - que não se detém
nem para ganhar fôlego -, e Quim não sabia se a Chapim-Azul tinha recuperado
completamente e se saberia voar. No entanto, e porque o apego é comum em quase
todos os homens, não a quis libertar. Ela e o cão eram a sua família e sendo
humano ou besta, nenhum homem no seu juízo abandona a família, corta sem apelo
o cordão que os une a todos.
Num desses primeiros dias de
primavera, depois de um inverno rigoroso, em que parece que todo o mundo se
reinventa na criação e na novidade, numa explosão de vida que é a cor, o som, a
paz com que os cenários da natureza se sucedem, passando por acaso num voo que
o levou a esse encontro, um garbo Chapim-Azul macho, cruzou-se com ela. Ouviu a
doçura da sua melodia, reconheceu que era alguém da sua espécie e aproximou-se
num voo planado. A Chapim, espantou-se por se ver duplicada na imagem daquele
pássaro novo que se prantou à sua frente. Nunca tinha visto outro pássaro que
fosse igual a si e gostou do que viu. Viu um corpo pequeno mas harmonioso. Na
cabeça, um barrete azul com uma lista ocular preta e a face branca. O peito
amarelo, e o dorso cinzento-azulado. Para suster o voo e flutuar como que
parado à sua frente, o pássaro mexe freneticamente as asas. Ela, nunca tinha
realizado a sua própria beleza, nunca se tinha visto reflectida, nunca tinha visto
todo o corpo senão partes dele. E agradou-se.
- Olá.- Disse o chapim-azul
homem, concedendo-se as despesas da conversa que se inicia.
- Olá. - Respondeu a Chapim
engaiolada, e não se vai dizer que respondeu recatando-se na timidez, ainda que
tenha sido isso que ela fez.
- Porque estás presa?
Pergunta-lhe.
- Não estou presa. Esta é a
minha casa.
- E podes sair da tua casa?
- Não sei, nunca experimentei.
Nunca o desejei.
- Sabes voar?
- Talvez, não tenho a certeza.
- Nós os pássaros somos os
animais mais livres da Terra e sabes porquê?
- Porquê?
- Porque voamos. Não há prazer
que se compare.
- Se o dizes, gostaria de o
fazer, mas também gosto muito de viver aqui. Tenho a minha família.
- Quem é a tua família?
- Um homem velho que é caçador
e um cão rabugento só para fingir que é mau e fazer-se notado.
- Mas eles não são pássaros!
- Pois não, mas são a minha
família.
- Se não são pássaros nunca
poderão compreender o valor que damos à liberdade. Eles não voam, não sabem ser
felizes e livres.
- Mas gosto deles, são tudo o
que tenho.
- Amanhã venho visitar-te e
trago-te uma novidade, que espero vás gostar.
- Está bem, visita-me.
Como um pequeno facto pode
mudar o andamento do mundo e de quem o habita! Uma conversa improvável de um
pássaro que voava por ali originou na pequenina cabeça da Chapim-Azul, um
vendaval, uma tempestade. Ela que ainda não o sabia explicar, prendeu-se ao
pequeno pássaro que a desafiou a experimentar limites que desconhece. Não o
sabendo também, ela tinha-se prendido para sempre a esse ser livre, um reflexo
seu, numa coisa simples e tão complexa, mesmo no reino dos pássaros
Chapim-Azul, o amor.
Não dormiu, teve sonhos
acordada, a imagem do pássaro não lhe saiu da cabeça, ansiou que as horas
acelerassem e que o novo dia, pleno de todas as possibilidades, a transportasse
à ombreira da porta, onde, impacientemente esperaria a visita do seu novo
amigo.
O Quim que é um homem
distraído de todas as pequenas coisas que impliquem o uso de sensibilidade (mas
tinha gestos grandiosos como o de levar ao colo da sua mão o pequeno Chapim
ferido) estranhou a irrequietude da sua Chapim-Azul. Dado a conhecimentos de
uma vida praticamente passada ao ar-livre, considerou que seria um prenúncio de
algum fenómeno meteorológico que estaria para chegar, convencido que estava de
que os animais pressentem as coisas muito antes dos homens, eles é que não os
entendem a tempo.
Com o amainar da tarde,
passadas as inclemências e os calores do dia nesta paisagem quase ausente
árvores, num anúncio de deserto que se aproxima mas os homens também não o veem
chegar, o Chapim-Azul cumpriu e apareceu. Trazia um objecto estranho preso no bico,
que pousou no chão para poder falar com Xica.
-Cá estou eu.- E parecia que
sorria se é que os pássaros o fazem.
- Trouxeste-me a novidade? –
Disse ela voltando a recatar-se em acanhamento.
- Trouxe-te a chave da
liberdade. – Nisto, pega no objecto, um modesto seixo, e começa numa estranha e
complicada ginástica, a martelar com a pedra no fecho tosco, um arremedo de
travão que impedia que a porta da gaiola se abrisse.
Tentou e tentou e conseguiu.
Ele tinha a energia do amor, que move montanhas e o mais que seja preciso.
A porta abriu.
- Anda. Vem ter comigo. Vamos
voar.
- Não posso. Tenho medo.
- Experimenta, anda.
- Tenho medo de não querer
voltar e eu gosto tanto da minha família.
- Não tenhas medo. Se eles
gostarem de ti como uma filha, ficam felizes por tu poderes voar.
- Quero muito e não quero
muito. Nunca tive uma decisão tão difícil.
- É bom decidir, mesmo que
erremos provisoriamente. Anda, sê livre como eu.
Ela não foi capaz de se
abeirar da porta e o Chapim-Azul macho, voltou todos os dias e quando chegava a
ela, não dizia nada, deixava-se simplesmente ficar a planar no ar, a olhar
meigamente para ela.
Custou, demorou, mas a
Chapim-Azul a menina dos olhos de Quim, que só era bruto para imitar o cão, a
fazerem-se um ao outro de rijos, aproximou-se finalmente da porta e voou.
Voou para sempre até esgotar o
futuro.
No universo dos pássaros esta
é uma bela história de amor e liberdade – andam juntos os dois, não se despegam,
e eles também -, para os homens não sabemos.
Nas primaveras que se seguiram
a esta, o casal de Chapins-Azuis visitaram o velho Quim e o cão façanhudo.
Estes reconheciam Xica e o seu amante, e cada um à sua maneira ficou feliz por
eles. O casal parece que engrandecia quando cantavam juntos essas belas
melodias dos pássaros, que não se sabe o que contavam, mas a música era uma
sinfonia a dois, perfeita, que punha o Quim de lágrima no olho a dizer ao cão
que não senhora, não estava a chorar, era das cataratas, como se este soubesse
o que são cataratas. Ele próprio, tinha os olhos húmidos.
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