Nas janelas do prédio em frente assisto a movimentações de
sombras, semi-obscuras, seres viventes.
Um homem idoso, sempre com o mesmo pijama, fuma um cigarro,
olhando de relance para a rua e volta rapidamente para uma zona sem luz em que
o deixo de ver. Vê-se pouco esse homem, abeira-se pouco da janela. Tenho a
sensação, talvez errada de que fuma desistidamente.
Uma menina ainda muito menina, dá pulos e pulos no sofá branco
da sala e consegue-se perceber isso melhor, em determinados momentos do dia
quando o ângulo da deslocação do sol permite incidir a luz na janela.
A mãe da menina, cola animais e flores recortados em cartolinas coloridas, na janela da sala, talvez para a menina
imaginar que a paisagem, lá fora, é todos os dias diferente. Eu, que não sou a
menina, imagino, e gosto.
Um homem, janta todos os dias à luz de velas, sozinho,
compenetradamente, não sabemos o que estará a pensar. Nunca vem à janela. Dá a
sensação de ser um homem solitário, pela forma pausada e quase esquecida como
leva a comida à boca. Parece estar a comer sem prazer.
Um gato, passa horas completas, como uma esfinge, não se sabe
se de olhos abertos ou fechados, impávido, estátua, no parapeito da janela onde
está. É possível por ser gato, que as escassas movimentações da rua o
interessem pouco.
Não vejo nada mais de relevante e ainda assim são as únicas
observações que tenho do exterior de mim, do mundo em que me fechei. São por
isso, observações valiosas porque são os sinais exteriores de uma vida que por
impedimento forçado está agora fora de mim.
Depois de tudo o que vejo e disse, são as sombras, possíveis fantasmas,
não o sei, não posso comprovar, contornos mal definidos. Presume-se que sejam
pessoas, ou animais, que passam em segundo plano a suficiente distância das
janelas para não se conseguir definir o que são, quem são.
Tenho muitas dúvidas e receios.
Todos os dias esse prédio tem duas visitas do exterior. Uma gaivota,
percorre sem pressa nem muita curiosidade o beiral do telhado. Após alguns
instantes, nem por isso muitos, voa não se sabe para onde, livre, e voltará
muito provavelmente amanhã, para repetir o que faz todos os dias. Não parece
particularmente simpática, não conheço nenhuma gaivota que o seja. Ela vem da
parte da manhã.
Ao anoitecer, naquele momento único e glorioso de todos os
dias, independentemente das condições atmosféricas e da vontade de cada um,
quando o dia se despede à entrada da noite, num impasse a que chamamos poeticamente claro-escuro, ou então,
lusco-fusco, ou simplesmente ocaso, crepúsculo, um melro altivo e pássaro de
si, pousa assertivamente no telhado e pia.
Não sei se chama alguém, algum companheiro, um chamamento de
amor, ou se simplesmente me reconhece por estar todos os dias, eu, debruçado no
parapeito da minha janela, e tenta falar comigo. Desconfio que sim e a medo,
não muito crente, comecei a responder com palavras ao seu chilreio rico em
timbres e entoações.
Ele responde e mantemos desde aí longas conversas todos dias,
sobre tudo e sobre nada, coisas nossas, intimas, das nossas vidas que não
divulgamos.
Quando a noite já entrou no palco, despedimo-nos. Ele voa
livremente, tem todo o mundo para si, eu, recolho-me, ainda mais e como não
posso andar nas ruas nem sequer imaginar que voo, tenho de me pôr a sonhar e se
me deixo ir embrenho-me numa vida paralela à minha, onde tudo é permitido e
ausente de impossíveis. É só sonhar.
Amanhã, à hora marcada, volto ao parapeito e espero que o meu
amigo melro não se atrase, temos muito que pôr em dia.
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