Chamo-me Nuno e sou eu o homem que observa, no
jardim, a mulher que lê livros. Observo-a não só a ela, mas a praticamente
todos os que despertam a minha curiosidade.
Confesso que sou assim desde que me
conheço. Sempre preferi estar sentado na
periferia de onde está a ocorrer a acção, num ponto de invisibilidade, sorvendo
todos os pormenores do que se está a passar à minha volta. É tão forte esse
vicio (não sei se o é), que sou muitas vezes apanhado a olhar como um basbaque,
insistentemente, talvez assustando alguém que por uma ou outra razão, ou mesmo
por uma razão muito desinteressante para a generalidade das pessoas, atrai a
minha atenção, deixando-me colado a ele, ou ela, ou à coisa. Não tem nada a ver
com o outro sexo. É indiferente.
Pode bem acontecer que ponha as vistas num
casal aparentemente banal, e não despegue. Assim como pode acontecer que as
ponha numa composição de flores que por algum motivo ache desenquadrada. Não
sou um perfeccionista, não é isso.
Quando dou conta, envergonho-me, mas a vontade é
tanta, que se me mantiver no local, não resisto, e volto a olhar. Tal impacto
tem isso em mim, que consumo horas a fio nesta ocupação de nada.
Pensei que com a idade esta pulsão se esbateria,
mas não, mantem-se. Mais velho, se somos apanhados, a recriminação dos outros é
maior, pensam que temos uma tara, somos perigosos, babamos. Já passei, mais do
que uma vez, por umas tantas situações que se complicaram. Os observados não
entenderam os meus argumentos para lhes assegurar que sou um individuo sem
doenças conhecidas, nem físicas nem vindas da cabeça, e quiseram partir para a
agressão. A custo saí-me bem, mas não creio que possa ser sempre assim. Não sei
porquê, mas tenho o pressentimento que um dia vai correr mal.
Porque sou assim? Não sei ao certo, a minha
intenção é boa, inócua digamos deste modo, eu estudo as pessoas. Não as esqueço
quando vou para casa. Ficam em mim, levo alguma delas comigo, e tento chegar a
conclusões.
Nos dias de hoje ver uma mulher (menos ainda um
homem) ler um livro em público, desculpem, mas é motivo no mínimo para
despertar interesse e pôr a replicar os sinos todos. Como ninguém o faz, é
perfeitamente natural que uma pessoa atenta como eu, se detenha e alimente a
sua curiosidade, quando apanha um caso destes, digamos que uma verdadeira
excentricidade.
Sabeis, dos relatos anteriores que durante uma
temporada frequentei com regularidade este espaço público e acabei por me
interessar por essa mulher, e não sabendo nada dela nem da sua história
particular, acabei por desenvolver um processo criativo, na imaginação do seu
mundo e da sua pessoa no seu mundo. Fi-lo por necessidade minha de a colocar
num ambiente criado por mim e para me sentir confortável quando penso nela.
Fiz isto porque infelizmente, mas gostava que não
fosse assim, não consigo ler um livro em locais públicos que me desconcentram,
dando-me constantemente a repetir a frase que acabo de ler, para ver se não
perco o fio, e estou repetidamente a voltar atrás, ao princípio. Assim, para
passar o tempo porque preciso, como todos nós de arejar, dedico-me a observar
os outros, e quando encontro um que por algum motivo me pareça diferente,
agarro-me a ele. Que é uma maneira de dizer.
Para que me conheçam um pouco melhor, trabalho num
centro de atendimento. Apesar de já não ser novo, ou talvez mesmo por isso,
consegui este emprego, a custo. O meu trabalho consiste em receber as chamadas
de pessoas que estão descontentes, têm algo a dizer, com o canal de televisão
do Estado. Aprendi um guião de respostas, não posso sair disso, muito menos
deixar transparecer seja de que forma for, que estou do lado delas. A ideia é
encaminhar as suas queixas para o gabinete do Provedor, um departamento acima
do meu (ganha-se melhor e é um sonho que todos aqui no centro de atendimento
acalentamos de vir a atingir: um posto no gabinete do Provedor).
Creio ter jeito para o trabalho. Não ganho muito,
mas na verdade as necessidades já não são as de antigamente. Os filhos estão
encaminhados nas suas vidas, ganharam balanço próprio, e sinceramente, cada vez
me contento mais com menos. Consegui o emprego por obrigação do centro de
emprego, que não me descobriu nenhuma actividade que se conjugasse bem com as
minhas competências: um leitor imersivo. Não há actividades com esse perfil, e
ainda por cima pagas.
Faço horário completo. Não tenho nada de especial
que me entretenha em casa, no centro de atendimento, somos muitos, todas as
idades, sempre a entrarem novos, é um local muito interessante, onde me sinto
bem.
Já se percebeu que o jardim é onde faço a pausa de almoço. É verdade.
Venho sozinho. Uma manhã a atender telefonemas mais
a perspectiva do que me vai reservar a parte da tarde e o jardim acaba por ser
um refúgio temporário. Onde reponho energias. Os jardins para mim têm não sei
um quê de pacífico que me magnetiza. É da exuberância dos verdes.
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