Um Aerograma
“Mariazinha minha doce amada.
Penso que não te ofenderás se disser doce, menos ainda, amada. Não nos conhecemos em corpo, tu aí na metrópole, eu aqui nesta África por obrigação, mas chegará o dia, ambos o esperamos com a ajuda de um destino superior, que ajude a realizar o nosso encontro físico. Até lá, com o que já nos escrevemos, minha madrinha de guerra, ganhámos tanta intimidade que me permito sem vergonha e esperando que tu não cores, apaparicar-te com essas duas lindas palavras.
Doce Amor. Amor Doce.
Hoje no entanto, estou triste. Escrevo-te em azul petróleo, para não dizer negro. Aconteceu morte, a nossa rotina nesta espécie de profissão obrigada. Deveria parecer que estamos habituados a ela, mas nunca estamos, menos ainda quando nos leva um próximo.
Lidar com a morte não é o mais difícil. O primeiro luto é pesado e lento, mas depois de se instalar repetindo-se todos os dias, praticamente, torna-se como todas as coisas, numa sensaboria.
O mais difícil é quando a proporção de
lágrimas derramadas atingem o ponto de aceitação, que é desistência, e começam
naturalmente a secar mesmo assistindo ao macabro, ao facto de ser sempre
injusta, traiçoeira, inesperada, fora do controlo e da vontade dos homens de
bem. Os outros, são bestas.
Quando as lágrimas secam apesar de
continuarmos a chorar, é quando perdemos humanidade, um ponto sem retorno.
Hoje estou mais do que azul petróleo, minha suave ouvinte, estou farrusco, cor do carvão.
Morreu-me um amigo, e morreu de morte cobarde. Uma mina, o explosivo mais pusilânime!
Hoje é um dia de desabafo e choro sem lágrimas, para dentro, para o báu da memória futura, ou talvez nem chegue a isso, se eu ficar pelo caminho.
Se há um momento nesta nossa já longa relação por carta, em que sinto a maior das necessidades da proximidade de um corpo de mulher, é agora, que estou a tiritar sobre este calor abafado, húmido e irritantemente quente. E sinto essa premência de um corpo de mulher pelo facto de me faltar essa fundamental energia da protecção, do aconchego, do sopro da vida, a energia nuclear das mulheres.
Minha querida Mariazinha, desculpa este
desabafo e estas palavras salgadas, conto amanhã ou depois voltar a dizer-te
alguma poesia, mas hoje é impossível.
Envio-te uns beijos e também abraços, e os melhores cumprimentos à tua família, que espero esperançosamente vir a conhecer, acabe este tormento sem sentido, e a vida de todos nós deixe de estar em suspenso
O teu,
Manuel Joaquim
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