... agora mesmo.
- Boa noite
Senhor Doutor, com a sua licença que não quero incomodar: a sua sopa, a
preferida. Acabadinha de fazer, a escaldar como gosta, com os produtos da nossa
horta. Coma-a ainda quentinha Senhor Doutor, os aconchegos do estômago repousam
a alma.
- Obrigado dona
Jesus. Disse o Senhor Doutor sem tirar os ajudantes dos olhos (uma armação
barata em massa preta com lentes espessas) dos papéis que esmiuçava
meticulosamente à luz de um candeeiro que iluminava, pouco, uma mesa de camilha
em renda, feita e oferecida pelas afilhadas no seu aniversário passado.
Lá fora
fazia noite. As árvores e os grossos muros do palácio, absorviam os sons do
exterior, criando um perímetro protegido dos sons da cidade que mesmo à noite,
não deixa de produzir os seus ruídos próprios. Com toda a alimária recolhida, o
espaço estava em recolhimento.
- Com a
sopa e a mantinha nas pernas, é remédio santo, aquece num instante.
- O
problema senhor Doutor desta casa ser tão grande, com tantos quartos e vazios,
e os corredores a perder de vista, é ser difícil aquecer.
- Pudéssemos
nós mudar dona Jesus! Mas temos que fazer o sacrifício de viver neste palácio.
Servimos o Estado e este serve o Povo, não podemos ter queixas nas nossas
palavras. Nós somos os verdadeiros escravos do povo. E como damos o exemplo,
aquecimentos aqui não entram. Se as meninas tiverem o cuidado de fecharem bem
as janelas, as mantas nas pernas são suficientes em noites mais frias.
-Senhor
Doutor, a Maria do Carmo foi hoje à “Brazileira do Chiado” - como lhe pediu -
para dar conta dos ambientes, aproveitou e fez também a ronda completa pelos
cafés da Baixa.
-E então? O
que é que ela viu e ouviu?
-O Senhor
Doutor bem sabe que os homens tapam o mais que podem a cara com as abas dos
chapéus e cochicham para não serem ouvidos nas mesas do lado, mas sempre se
apanha uma coisa ou outra.
-Sabemos o
nome deles todos, dona Jesus. Não se preocupe, são os do costume.
- Sim são
sempre os mesmos: um bando de artistas e agitadores que nunca trabalharam na
vida e que se dedicam à política de café.
-Deixá-los
estar. Não são esses que me preocupam. Eles que se afoguem no palavreado e na
maledicência. Quando saem ao fim do dia vão direitos para casa com o rabo
dormente de tanto tempo sentados, e a língua gasta das asneiras que dizem entre
copos de aguardentes de qualidade duvidosa. Antes assim, eles que se cansem nas
pastelarias, e que não andem espalhados nas ruas e nas repartições a confundir
a cabeça das pessoas. Ali estão sob olho, até sabemos quantas vezes vão ao
urinol.
-Está bem
Senhor Doutor, mas só dizem mal, por tudo e por nada? Nem uma palavra de apreço
por si, de compreensão pelas amarguras que tem passado? Tudo pelo bem dos
outros? Não fosse eu, até se esquecia de comer, constantemente preocupado em
resolver as dificuldades do País. São uns ingratos e adoradores do demónio, é o
que são!
- Não se
apoquente dona Jesus. Um dia no futuro ainda hão-de chorar por mim, ansiar que
volte da tumba, como o outro, que se evaporou no deserto. Todos queriam que ele
voltasse para salvar o reino, mas deixou-os a falar sozinhos, que era o que a
mim me apetecia fazer, não soubesse eu que sem mim este povo seria órfão.
-Mas conte,
diga, o que foi que a Maria do Carmo apanhou no ar?
-Dizem que
o país vai gastar o dinheiro que não tem para enganar o povo com histórias de
grandes impérios e coisas dessas, só para os entreter. Que o Senhor Doutor quer
mostrar ao mundo que somos um país importante, mas o mundo anda ocupado na
guerra, e ninguém vai fazer um intervalo para nos visitar. Ainda por cima, um
ano não é suficiente para pôr de pé uma obra dessas. Vai ser só fachada.
-Dizem
também que os milhares de desgraçados que todos os dias chegam a Lisboa para
trabalhar nas fábricas para fugirem da miséria dos campos, nem têm condições de
vida decente. Os patrões alojam-nos como animais e nós, o Governo, nem nos
preocupamos com esses assuntos, que só dizem respeito aos patrões.
-Dizem
ainda que o dinheiro da exposição devia ser gasto em escolas e hospitais e
construir mais casas, para se alugarem aos funcionários do Estado a outros
fiéis servidores, com rendas em conta.
-Calúnias
dona Jesus, o que lhe digo é que essa gentalha só se preocupa com coisas de
nada. Não tem onde ocupar o pensamento, e dá-lhes para dizerem mal dos outros, é
só o que sabem fazer.
-O dinheiro
foram eles que o plantaram e o pouparam? Quando peguei neste país andavam todos
com os bolsos das calças rotos e eu cosi-os um a um.
-Não fosse
o alento que o Senhor me dá, e uns poucos – muito poucos – amigos verdadeiros;
não fosse a motivação das suas palavras dona Jesus, não fossem as minhas
afilhadas, que me mimam e cuidam, já há muito teria batido com a porta deste
palácio cheio de humidades.
-O que não
daria para voltar a tranquilidade da minha casa na Beira, e acompanhar a minha
pobre Mãe, que tanto precisa do meu carinho no outono da sua vida.
- A
política dona Jesus, é a profissão mais ingrata do mundo.
-É verdade
Senhor Doutor, mas não dê ouvidos ao que dizem, não fosse o Senhor Doutor a
tomar conta de nós, e esta gente, já se tinha atirado toda ao mar.
- Não fique
até muito tarde, descanse para amanhã voltar a acordar cheio de energias para
combater estas forças do mal que andam por aí à solta a envenenar o mundo.
-Vou mandar
pôr a botija de água na sua cama, Senhor Doutor. Uma boa e santa noite e que
Deus Nosso Senhor e todos os anjinhos do céu o acompanhem.
-Obrigado
dona Jesus, anjo é a senhora. Eu governo este País, mas a senhora é o meu
governo. Sem os seus cuidados, andaria eu desgovernado!
A dona
jesus, retirou-se e a pouca claridade ambiente não deu para perceber se algum
rubor se instalou nas faces da senhora, com as últimas palavras do Senhor
Doutor.
Antes de se
deitar o Senhor Doutor ainda passou os olhos pelo relatório diário de
actividades da polícia política e estudou com pormenor, o plano ideológico
traçado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, para a grande exposição do
Mundo Português. Aquele Secretário era homem de muita competência, mas tinha de
estar de olho nele.
Despertou
repentinamente, sentou-se na cama a tentar perceber onde estava. Levou algum
tempo a perceber que tinha acordado. Foi um sonho. Tão real que parecia estar a
acontecer neste preciso momento. Mas não, era impossível. O tempo não viaja no
tempo, na direcção contrária ao seu impulso de seguir em frente. Não se repete.
Ou será que ele estava enganado e afinal ainda não acordou e continua a sonhar.
Ligou a televisão, pôs os óculos, encostou-se e ajeitou a cabeça na almofada.
No noticiário
o mais alto representante do regime democrático, cumprimentava efusivamente o
ditador eleito. Trocavam impressões que pareciam, pelos seus semblantes,
amistosas e cordiais. Povos irmãos.
Voltou a
adormecer.
(*) Foto: Correio da Manhã
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