Com a
introdução do Juíz Presidente sobe o volume do ruído, murmúrios, demasiados
murmúrios. Estão ali uma mão cheia de todos, em representação do colectivo dos
homens, a única espécie que tem questões por resolver com Deus. Todas as
religiões e crenças, todas as correntes da filosofia e das ciências, os
agnósticos, os ateus, os indecisos - são tantos estes – os burocratas com ou
sem religião, os tecnocratas, nunca faltam à chamada.
O Juiz pede
contenção, tenta como um chefe de orquestra controlar as exaltações. Não tem
batuta, tem as mãos, e os seus pausados movimentos de braços no sentido
descendente, indicam que os ânimos devem serenar.
Consegue.
- Temos
muito para Te perguntar, tanto que poderíamos ficar aqui para o resto dos nossos
dias. Os nossos, não os Teus, porque és eterno. Não podemos perder esse tempo, porque
temos famílias que nos querem ver e nós queremos vê-los e seguir as nossas
vidas, e as coisas que temos para fazer e para completar, e temos pressa de
tudo isso porque somos finitos.
Ele não se
mexeu.
-Talvez só
tenhamos mesmo uma única pergunta, que resume todas: se nos fizeste à tua
imagem, porque não nos deste a imortalidade? Prometeste a alguns, o reino dos céus,
com condições impossíveis, e as certezas de que o paraíso exista são também poucas.
Ele tossiu e
não se imaginava que o fizesse. Estaria ele feito à nossa imagem? A quem lhe
passou isso pela cabeça, logo esqueceu, era um pensamento irrealista.
Ao fim de
minutos, que num ambiente assim conta como muito, descerrou os olhos. Eram
grandes, de um verde que parecia turquesa, mas podiam também ser azuis, ou
cinzentos, castanhos, podiam ser todas as cores que assim pareciam ser. Olhou
profundamente fixando ponto nenhum, uma fixação ao longe, trespassando os
corpos presentes e os objectos. Fixou o olhar algures. Belos são os seus olhos.
Com um ver destes pode, se quiser, hipnotizar o mundo.
Levou tempo
a responder, tudo em si é pausado, ou ponderado, ou para os homens o tempo tem
um significado de amplitude diferente e nele, que o criou, cumpre o seu ritmo.
- Eu não vos
fiz à minha imagem.
A sala
congelou. As pessoas entreolharam-se estupefactas, nem falar falaram. É a
primeira vez que se houve a voz de Deus. Todos os milagres da história da
humanidade foram feitos por subalternos, com as vozes deles. Nunca se tinha
ouvido a voz de Deus.
- Antes da
Criação, cheguei a pensar nisso, era a minha intenção, mas achei que vos traria
infelicidade e desavença.
-Se vocês soubessem
o que é ser há minha imagem?
Uns
calaram-se, outros contestaram. Havia como se sabe de todos os credos e de
nenhum.
O Juíz
Presidente, porta-voz do colectivo, eleito aleatoriamente por uma tômbola
computacional em que foram introduzidos todos os nomes do homens vivos da terra,
enfatizou a pergunta:
- Porque não
temos a imortalidade? O domínio absoluto do tempo e de toda a sua extensão?
- Se agora guerreais pela mais pequena das insignificâncias,
o que não seria sentires o poder de seres como Eu, iguais a Deus?
- Seria uma
luta sempiterna. Sem tréguas e sem mortes, carregada do mais denso e escuro dos
sofrimentos. Uma luta de homens decadentes, semideuses, enfastiados com a vida
que nunca termina, um tédio a arrastar-se até sempre, e todos iguais, igualmente
poderosos e imortais.
Pausou uma
vez mais, e continuou:
-Vejam o
exemplo do anjo caído. Quis ser igual a mim, sentar-se à direita de mim, e no final
deu em quê? Uma imensa e corrosiva inveja. Uma destilação de ódio e raiva.
Perdeu-se e perdi-o eu que o amo tanto. Um dos meus filhos preferidos.
A audiência empederniu,
e lá fora, no exterior do Tribunal de Justiça, baixou uma incómoda quietude,
uma ausência de circulação do ar, nem uma brisa, os sons ficaram inertes. Na
ausência de movimento, sente-se a antecedência do momento que está para
acontecer.
- Mas se
anunciaste aos quatro cantos que somos feitos à tua imagem, porque não foi
assim? O que agora dizes não são explicações. Uma vez mais, minimizando-nos,
paternalista até no momento do teu julgamento, apresentas argumentos de
desculpa que só te consolam a Ti.
O Juís
insiste:
- O que
queremos são explicações. E podes falar, que compreendemos bem. Nisso não nos
poupaste, na inteligência de pensarmos, de conceptualizamos, de abstrairmos.
Tivéssemos ficado como as outras criaturas da Terra e possivelmente dos outros
planetas, que não conhecemos, e não estarias agora nesta situação, e nós
juízes, a pedir-te explicações.
- A
imortalidade é um aborrecimento.
- Poderá
ser, mas gostaríamos de ser nós a decidir.
- E também
vos traria problemas de ordem prática.
- Como
assim?
- O espaço.
Se não houvesse a morte, como poderíeis alojar-vos a todos? Todos os dias a
nascerem sem nenhuma morte para equilibrar? E os recursos, deste e dos outros
planetas? Não são ilimitados?
- E o azar
dos que nascem com mau carácter, o tempo eterno de vexames e arbitrariedades
que os que os rodeiam tinham que aturar?
O Juiz:
- Pois aí
também nos podias ter aperfeiçoado um pouco melhor. Somos assim porque nos
fizeste assim, e não digas que era para ser diverso, para tornar as coisas mais
interessantes. É que do interesse das pessoas desinteressantes temos todos a
nossa conta, e pudéssemos não nos dávamos com nenhuma.
Deus:
- Seria uma
monotonia, acreditem.
Contra-resposta:
- Todos esses assuntos são domésticos, nossos portanto. Cabe
a cada um tratar de si e dos seus como melhor sabe. Passado o limiar das suas
portas, entra-se na intimidade, e na intimidade só se entra ou por convite ou
por afinidade sanguínea. Monotonia ou não, cabe-nos a nós escolher.
A audiência gostou desta resposta e aplaudiu.
O Juiz Presidente do colectivo, pôs-se num ar ainda mais
sério, dando a entender que não ia tolerar esse tipo de manifestações. Num
tribunal não se batem palmas.
- Insistimos. Se não era para sermos iguais, porque anunciaste
que ia ser? Tiveste mais do que oportunidade para nos desmemoriar dessa
promessa.
- Não o fiz por pena.
- Pena?
Lá fora levantaram-se os cartazes, e o coro dos assobios. Cá
dentro a casa tremia com o que se passava lá fora. Fez-se silêncio,
prolongou-se, até serenarem os nervos e Ele responder.
- Nalgum momento tive pena que não fossem realmente iguais a
mim. A minha imensa solidão por vezes prega-me partidas, e tive esperança de
ter uma companhia à altura. Seriam vocês. Os anjos são de outra espécie, são
vaidosos, convencidos e visitam-me muito pouco.
Este foi um comentário que causou grande impacto. Todos os
correspondentes dos meios de comunicação, escrita, falada, vista, fizeram logo
“directos”, e repetiram a sua última frase, e logo milhares e talvez dezenas de
milhares de comentadores, em todos os interstícios do mundo com gente, se
aprontaram, na sua sábia sabedoria de saberem sobre tudo, a comentar
solenemente as palavras Dele.
Ele afinal, não gostava assim tanto dos anjos.
- Nós aqui e agora consideramos a pena um sentimento doentio,
bafiento, conservador, da outra senhora. Ter pena de alguém é um sentimento
aviltante.
A audiência concordou. Mais palmas.
Ele:
- Não penso assim, e como nunca estou enganado sou eu e não
vocês, que tenho razão.
Este comentário era escusado.
Muitos vociferaram, utilizaram vernáculos licenciosamente,
houve mesmo uma tentativa, prontamente controlada, de invasão da área onde Ele
estava sentado.
Lá fora partiram-se à pedrada alguns vidros de carros. Não se
sabe porquê, os seus proprietários não tinham a culpa. As pessoas, quase todas,
são assim, imponderadas.
Desta vez levou tempo a acalmar.
- Não vos fiz à minha imagem, porque eu não me vejo bem no
espelho. Não quis repetir uma imperfeição.
(continua…)
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