O Juiz Presidente, chama-se António de primeiro nome, o que
vale e é suficiente para se dirigir a um desconhecido e apresentar-se. Tem como profissão fazer uma imitação de Deus nos assuntos dos
homens, juiz. Fora isso é uma pessoa com contas pagas, gastos contidos, poupanças, um
metódico sem ambições. Tem dois filhos mais os problemas da adolescência, um
cão e os problemas naturais dos cães (nomeadamente os pelos dos cães) e uma
mulher que é professora de biologia numa escola secundária de periferia,
fartíssima até à raiz dos cabelos de aturar os alunos, os currículos desfasados
no século errado, e o vencimento congelado praticamente desde que iniciou a
carreia. Nesse tempo, nos começos da vida adulta, estava cheia de boas intenções
e era muito mais viçosa do que se encontra neste momento. É o desgaste do
tempo.
Quando no final do dia o juiz chega a casa, já estacionado mas
ainda com a mão na chave do carro na ignição - a trabalhar - cai-lhe a razão em
cima. Foi literalmente assim, um daqueles momentos em que se vê as coisas com outra
clarividência, uma grande nitidez, e logo a seguir embota de novo a vida e
volta-se à rotina de se continuar a ver as coisas sofrivelmente.
Fica a impressão forte, contada mais ou menos assim:
Aos olhos dos arguidos
dos processos que julga, ele é um deus todo-poderoso, no entanto não passa de um homem.
As suas decisões são soberanas,sem volta atrás, o futuro dos arguidos está na sua escolha, e
por vezes falha.
Então, se falha e se é a imagem Dele pelo menos nalgumas coisas que dos assuntos da imortalidade já se viu que não, sendo o Criador a Entidade mais perfeita, não pode igualmente falhar?
Aceitar isso seria alterar toda a cosmogonia do mundo, e com o tempo transcorrido dos primeiros e tímidos esboços da verticalidade, desde que os homens pisam o chão, muito acontecimento se teria que alterar. Fazer uma reescrita da história. Para conseguir esses trabalhos, levaria pelo menos o tempo de uma geração. Entretanto os da geração em que se está a rescrever a história, ficariam sem história - nenhuma - órfãos de referências. Não é justo, construir-se uma geração falha de história. É pois uma ideia impraticável.
Então, se falha e se é a imagem Dele pelo menos nalgumas coisas que dos assuntos da imortalidade já se viu que não, sendo o Criador a Entidade mais perfeita, não pode igualmente falhar?
Aceitar isso seria alterar toda a cosmogonia do mundo, e com o tempo transcorrido dos primeiros e tímidos esboços da verticalidade, desde que os homens pisam o chão, muito acontecimento se teria que alterar. Fazer uma reescrita da história. Para conseguir esses trabalhos, levaria pelo menos o tempo de uma geração. Entretanto os da geração em que se está a rescrever a história, ficariam sem história - nenhuma - órfãos de referências. Não é justo, construir-se uma geração falha de história. É pois uma ideia impraticável.
Se ele aceitar como válida a permissa do erro, tudo vai mudar
no julgamento, e terá que se encontrar uma solução mais apropriada, e explicar
isso muito bem às pessoas, principalmente aos amargos, que dificilmente vão
aceitar uma absolvição sem consequências.
Ou então absolve-lo já, sem se avançar mais nas perguntas, e esperar
que amanhã de um dia destes, toda a gente se tenha esquecido do episódio bizarro do julgamento de Deus. Pode-se mesmo, como terceira via, negociar uma solução de compromisso. Airosa pode-se dizer, cómoda para as partes, tudo amigo como antes.
Mal sai e tranca o carro e dá uma volta por fora para se
certificar que está tudo bem, o cão - espertos os animais que com antecedência
pressentem a chegada do dono - começa, dentro de casa, a ladrar ruidosamente. Alguém
lhe abre a porta e ele sai como uma bala para encher de lambidelas o ser que mais
ama no mundo, o seu Deus.
Os cães não discutem teologia, porque os deuses dos cães que são
todos os homens, mesmo os que os tratam menos bem, são plenipotentes e
perfeitos.
Com uma ternura tão intensa manifesta nas labidelas, o Juiz esquece as preocupações. Terá que tomar
uma decisão, a mais difícil da sua carreira, mas ainda não é hoje.
O mesmo se passa com Deus quando decide. Toma para si todo o peso de responsabilidade, sobre os seus ombros abstractos.
O Juiz gostaria neste momento de ser criança, ficar na rua até escurecer a brincar com o seu cão, lançando a bola vezes e vezes sem conta, um jogo encantatório a dois. Se ele pudesse ainda brincar, mesmo esfolando os joelhos e desgrenhado de poeiras e relvas pegadas ao cabelo por se andar a rebolar pelo chão com o Foguete, escolheria ser sempre assim, não crescer. Era isso a eternidade.
O mesmo se passa com Deus quando decide. Toma para si todo o peso de responsabilidade, sobre os seus ombros abstractos.
O Juiz gostaria neste momento de ser criança, ficar na rua até escurecer a brincar com o seu cão, lançando a bola vezes e vezes sem conta, um jogo encantatório a dois. Se ele pudesse ainda brincar, mesmo esfolando os joelhos e desgrenhado de poeiras e relvas pegadas ao cabelo por se andar a rebolar pelo chão com o Foguete, escolheria ser sempre assim, não crescer. Era isso a eternidade.
Mas logo afastou esse desejo. É uma atitude ridícula e cobarde querer ser criança numa
situação de aperto. Ser homem é ser responsável. Não se quer ele à imagem Dele? se não for assim, como pode querer renvidicar ser mais?
Entrou em casa - cheira a um belo estufado, em abstracto. Foi
ao quarto para dar um beijo aos filhos que não lhe abriram a porta. Não insistiu,
sentou-se no seu cadeirão e reuniu-se de novo com as preocupações, a fazer
tempo para o jantar.
Iria pedir conselho à mulher.
Iria pedir conselho à mulher.
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