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ONTEM – FOLHETIM FINAL, OU QUASE.






E termina o dia.

Quando as nuvens não criam véus e tapam a luz do sol que se despede das gentes deste lado, seja em que mês do ano for, é eminente a possibilidade de ao pousar os olhares no céu, se assistir a um magnífico espectáculo com os cenários que vestem a escapada temporária do astro rei para o lado oposto do mundo. A queda do pano é muitas vezes tão deslumbrante como foi a actuação em palco. É um caso raro em que um adereço se configura em protagonista principal.

Mas há meses do ano, em que as cores do ocaso são diferentes, outras, difíceis de dizer em palavras, só vendo. Setembro e Outubro. São cores que nos impregnam com brilhos de uma certa nostalgia, estranha, não propriamente desconfortável – pelo contrário – um sentimento de leve tristeza feliz. O prenúncio dos tons escuros que se aproximam, a despedida da amarelenta, forte luz do Verão, nas melhores versões das iridescências, sentidas dessa forma nesse sentimento andrógino.

Termina o dia no pátio e quem estiver atento, criança ou adulto, pode ter esse derradeiro prazer, antes da noite inevitável tomar posse da parte do mundo que fica negra.

O tempo correu abstractamente a correr. O tempo que o homem inventou para se agarrar a um fio invisível , o seu corrimão para  conseguir seguir em frente, esvaiu-se em flagrante. Num instantâneo, tantas as coisas a acontecer, impossível um relatório de todas elas, só deus o poderá fazer na sua visão de tudo.

Neste dia passado, as crianças brincaram mil e uma brincadeiras, e vão para casa felizes ou ligeiramente amuadas, o que passa rápido. Ainda não lhes chegou o tempo de se inquinar esse estado de alma abstracto mas para elas absolutamente real, que faz de uma criança o que ela é: um ser feliz. Fala-se nele e generaliza-se, nem todas as crianças são felizes, mas num mundo ideal, e o pátio é o mundo ideal, todas são.

Nesta noite nem todas as crianças vão para casa, três, os mais velhos, todos rapazes, o peso do género ainda é pesado e bacoco, vão acampar no pátio.

A primeira noite de liberdade, que quer dizer a primeira noite em que eles vão ficar entregues à sua própria protecção, à sua decisão de escolha. Responsáveis das consequências, vão ter pela primeira vez o gosto, por vezes amargo, outras açucarado, de entenderem o fluxo ininterrupto de todas as acções da mão ou do pensamento, que geram uma consequência própria , uma dinâmica, uma cadeia imparável de outras acções e consequências num nunca mais acabar eterno.

Mas isso são pensamentos que eles ainda não têm. Agora têm alguma apreensão, talvez medo, mas estão naturalmente excitados com a ideia da realização de uma aventura que tanto sonharam, tantos planos fizeram, tanta mão de obra teve, na construção da tenda e dos sacos cama onde pensam que vão dormir.

Foi muito difícil obter autorização superior para essa aventura noturna. Mas a persistência é como a água, não se dá por ela constantemente a pingar, e passados séculos, quando se repara, furou a pedra em que pingava.

Os meninos, três são eles, fazem uma fogueira para aquecer a comida. Nas janelas das cozinhas há olhos que os olham, atentos a todas as possibilidades de a fogueira correr bem ou mal. Eles ajeitam-se porque já sabem fazer fogueiras. Vem à tona uma memória recente, as festas ao santo João, uma grande noite todos os anos, no mês de Julho, onde ainda se salta sobre o fogo. Já não se faz isso, era o mais bonito dessa comemoração. Era a única noite em que os pais e os mais velhos vinham juntar-se às crianças no pátio. Punha-se uma mesa de improviso com tábua corrida, e uma linda e colorida toalha enaltecia essa improvisação. Cada um recheava a mesa de pequenas iguarias e bebidas. E convivia-se, uma das actividades mais fundamentais de todas as pessoas que todos os dias se cruzam e partilham caminhos neste mundo. O convívio é das palavras e da cabeça, mas com a presença do físico. A sua ausência é outra coisa, tem outro nome, não é convívio.

Eles aquecem, num tripé de metal construído propositadamente para o efeito e eventualmente a glória efémera de uma única utilização, a panela com arroz branco e salsichas cortadas em pedaços. Seja qual for o resultado final, vai ser um prato que ficará marcado nas suas memórias. Também aqui há um rito de iniciação: pela primeira vez eles proveem a sua subsistência, alimentando-se pelos seus meios.

A noite está agradável de temperatura e nada bule. Eles murmuram entre si, não se sabe porque o fazem assim, fazem, sentados no chão à volta do fogo, alimentando-o com os pequenos paus juntos durante dias e dias de explorações às redondezas- a mata do Monsanto termina já tímida, perto das suas casas, mas termina ainda assim. Os últimos pinheiros que dão para as traseiras dos prédios da rua de cima, oferecem inúmeros saborosos pinhões que não custam nada a não ser parti-los com uma pequena pedra que se ajeita à mão e comer de imediato. Fica agarrada a resina das pinhas nos dedos, custa a sair, cola e despega com a pele agarrada a ela. O cheiro da resina vale pela dor da pele perdida. É um cheiro difícil de encontrar, onde anda ele?

Comeu-se bem e bebeu-se água fresca dos cantis de metal forrados a feltro grosso. Os cantis dos nossos soldados em África. Os cantis comprados nos armazéns de produtos militares na feira da ladra. Não há melhores cantis que estes.

Passou o tempo que neste caso desta noite em particular neste local preciso onde três rapazes acampam pela primeira vez, foi um tempo de nada, coisíssima quase impossível de contabilizar, na imensidão de tempo que passou e passará e é e será  a nossa mais bem conseguida abstração, o nosso remédio contra os males da desorientação solitária, que nos achacam de quando em vez.

O lume enfraquece, consome-se, os rapazes dá-lhes o sono, entram na sua tenda gruta, o teepee dos índios cherokee. Acendem as luzes das lanternas fraquejantes porque as pilhas vêm dos rádios com que ouvem baixinho debaixo dos lençois o “Oceano Pacífico”, num acto corajoso de rebeldia revolucionária.


Vai começar a verdadeira noite, Agora.


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