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INTERMITÊNCIAS DE UMA VIDA







É um local bem arranjado. Não é bem um jardim, pode vir a ser no futuro. Basta um quiosque com esplanada, bancos aleatoriamente colocados, talvez um pequeno parque infantil, e ganha a identidade de um parque urbano, nome dos boletins camarários por que são conhecidos os jardins, que também já foram parques públicos.

Na realidade, é um aproveitamento inteligente de um espaço aparentemente inútil. Explicando melhor, o que existe escondido dos olhos de quem passa - terra adentro - é um reservatório de água potável, que serve os habitantes da cidade. À superfície, anos e anos que se perdeu a conta de quantos, primeiro foi um parque de estacionamento de autocarros dos transportes públicos, depois um relvado aparado para receber bolas de golfe expelidas por utentes carregados de stress e das adrenalinas diárias de negócios de risco e de especulação - que não vingou nessa missão humanitária, por a obra ter sido embargada. Depois, foi um depósito de ervas várias e daninhas, descuidadas e esquecidas de que existiam: o espaço e elas que o habitavam.

Com a invasão turística e fazendo paredes meias com um centro comercial, aquilo não podia continuar assim, e relvou-se o espaço, plantaram-se algumas plantas e abriu-se a passeio público. Decisão sensata.

Funcionária exemplar. Não faltou um único dia em mais de vinte anos de serviço. Era para estar às nove horas, às nove horas estava. Não era preciso todos os dias  lembrar o serviço. Ligar o sistema de rega, limpar os dejectos eventuais dos cães de companhia. Eficácia completa. Todos gostavam dela, pessoa que não nasceu para dar nas vistas, passou mansamente ao lado de tudo, sem incomodar.

Parece que um avô – ou seria bisavô? – fez aquilo que quase todos fizeram num passado mais ou menos passado: veio de uma província longínqua sem nome, aterrou (forma de o dizer) na cidade, vindo ávido atrás da vida, que lhe fugia das mãos desde que nascido, a ele, e aos outros de uma aldeia suja e inominada, para esta história pelo menos.

Sendo miserável e sem conhecimentos nenhuns, nem de gente nem de conhecimentos propriamente ditos - do intelecto - depositou-se em Alfama, trabalhou eventualmente no que houvesse que houve, até que se estabeleceu como marçano. Depois dessa sorte foi o que se pode imaginar de desinteressante, até chegar a ser avô ou bisavô da Julieta, uma funcionária exemplar muitos anos depois.

Julieta viveu portanto desde que se lembra dessas ligações antigas da genética familiar, no bairro de Alfama. Conhecida de todos, a dar-se em vizinhança com todos. Participou nas marchas, mas não muitas: tinha perna curta, desfeava o ângulo descaído do andor, porque havendo poucos parceiros da sua altura (todos mais altos), destoava das harmonias do conjunto. Teve que desistir por indicação pouco diplomática do chefe da marcha, um indivíduo de sexualidade mal resolvida que se julgava artista.

Mesmo assim, nunca deixou de gritar na avenida pelos seus, nem deixou quando a isso foi chamada por imperativo patriótico, de mandar com um vaso de manjerico aos cornos da cabra do bairro do lado, quando tentavam impugnar as vitórias do mais belo dos belos dos bairros de Lisboa: Alfama a labiríntica.

Aparte ser exemplar e bairrista, teve uma vida totalmente anónima e só não se pode dizer que desinteressante, por receio de ao dizê-lo, vir-se um dia a sofrer um anátema que impeça a entrada no paraíso, que seria um inultrapassável aborrecimento, quando se anda uma vida inteira à espera da compensação eterna da eternidade.

Acontece que nada em vida é eterno, só depois da morte. Então, com o falecimento da mãe, entrevadinha desde que há memória, Julieta recebe uma proposta de actualização de renda que foi um argumento irrecusável, da sua parte, para depois de uma vida com camadas de gerações em cima, ser compelida a rumar numa carrinha de mudanças alugada à hora, para a excelência ambiental de novas paragens na periferia da cidade.

Julieta nunca pôs um pé seu fora do solo nacional. Julieta foi viver para África e não o sabia, só o descobriu no dia em que despertou num ambiente estranho de sons e cheiros e dizeres. Não gostou de África. Por nada em especial, não gostou. Sendo uma pessoa como já foi referido de índole anónima, não se queixou a ninguém, tentou adaptar-se a uma vida no estrangeiro, mas fraquejou, deprimiu, ganhou uma saudade tumoral dos instantâneos que tirou e guardou na memória do seu bairro, saída à força dos empurrões dos “bóbis” com rodinhas de uns camones, que de um dia para o outro, tomaram como suas as casas acanhadas que os especuladores lhes decoraram para sacar os euros que podiam.

Continuou, enquanto os comprimidos não lhe embotaram demasiado a visão periférica e a dos contornos das coisas, a trabalhar nessa espécie de quase jardim das delícias, mas foi-lhe crescendo uma malignidade a tomar conta do corpo e da alma, uma coisa insidiosa e sem tratamento conhecido, a doença da raiva absurda.

Sim, existe. Está entre uma entidade viral e uma mutação imunitária. Sem tratamento, fatal.

Julieta, que passava aos olhos de quem a visse por uma senhora perna-curta absolutamente normal, estava a ser consumida interiormente por uma doença de desfecho tristíssimo e muito lamentável.

 No dia 10 de Junho, ano anormalmente caloroso para a altura do ano, ainda por cima de seca extrema, começaram a morrer de morte misteriosa e súbita os habitantes da cidade de Lisboa. Começou, como todas as coisas que são assim, por haver notícias de mortes esparsas em sítios diversos. Mas rapidamente se alastrou o fenómeno em número e devastação.

Os políticos, levaram uma semana a culparem-se uns aos outros , só porque sim. A população não ligou por estar habituada, os jornais equilibraram as contas do mês.
Uma semana depois, já quase a esbater-se a novidade de morrerem todos os dias centenas de pessoas, alguém ,não se sabe quem, descobriu e vendeu a notícia da verdade a um jornal tabloide. A causa foi o envenenamento das águas da cidade.

Os políticos encontraram finalmente uma culpa com sentido e deixaram de se ofenderem entre si programaticamente. O terrorismo em abstracto explica qualquer dúvida. Tinha que um dia bater à nossa porta, apesar de abençoados pela Senhora.

Morreram muitas pessoas, mais as que consumiam água canalizada. Os turistas, que são normalmente indivíduos instáveis, fugiram com todos os pés que tinham, os restaurantes da Baixa a saldarem e eles nem assim, a aderirem à ideia de que Lisboa está classificada no top das cidades mais que tudo.


Tudo,todos a fugirem daqui. O aeroporto colapsou, já se antevia. há anos que se quis construir um mais arejado mas vieram logo dizer que havia luvas. abortou.

Depois de todos estes inesperados, Julieta voltou para o seu bairro agora quase desértico, mas já estava muito débil, carcomida ela mesma interiormente pela raiva.

Ainda trabalhou uns meses no jardim do reservatório e nada se soube, estava de cabeça perdida quando o fez.

Morreu anónima, e o turismo nunca mais foi o mesmo.




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