Tenho a desgastante tarefa de escrever frases inúteis. Serão lidas, com sorte, uma única vez. Depois lixo.
Escrevo as frases mais efémeras que existem.
O propósito é mesmo esse, escrever frases sem emoção para serem lidas uma só vez. Não são feitas para se ficar a pensar. Não temos tempo.
Alguém tem que fazer este trabalho, outros, muitos, se puderem arrastam a minha honradez na sargeta para ocuparem esta cadeira. É alimentar o rastilho de um equívoco desinteressante e inventam todo um enredo, com personagens e boas mentiras. Os tempos não estão para facilidades.
É mil vezes preferível ter algum nos bolsos e ser precário, e aceitar enxovalhos do que os ter cheios de zeros.
Já vi passarem muitos rostos sem expressão por este local. Esqueci-lhes os nomes, se os tiveram.
Tem que se ganhar o sustento, este é um trabalho como outro qualquer. Nem melhor, nem pior, uma forma de ir perdendo a vida a conta-gotas com algum dinheiro para comprar cenouras.
Nunca tenho horas para sair, há sempre novos assuntos para se produzirem frases. É um processo sem fim à vista.
Não tenho vida própria. No princípio por ser estagiário, queria demonstrar toda a minha motivação. Aceitava escrever tudo o que me mandassem. O tempo passou, fui ficando, escrever tornou-se uma banalidade, como beber um copo de água. Agora já não sei fazer mais nada, sou organicamente inútil no que faço e no que não sei fazer, que é todo o resto de possibilidades que o mundo oferece e que eu desperdicei.
Venho para aqui de madrugada e saio quando tiver que sair, habitualmente pouco antes do dia clarear. Pego a entrada com a saída, o que me dá aproximadamente tempo para um banho, trocar de roupa e olhar com algum desalento, para a cama do meu quarto que tem um colchão de molas com quinze anos praticamente novo.
Nunca fui bom com números. Devo ter escrito uns milhões de frases vulgares. Não me lembro de nenhuma que me enalteça. Não fiquei com nenhuma. Nisso sou como os meus leitores anónimos: só as escrevo uma única vez e passo para as seguintes, sem nenhuma saudade pegada a elas.
O meu trabalho não tem verdade nem mentira. É um correr ininterrupto de frases frívolas.
Falei em leitores anónimos e nem sei se os tenho. Não escrevo para eles. Escrevo para comprar cenouras. E porque me mandam.
Antes de vir para aqui, quando era tão novo que só fazia a barba de três em três dias e fazia uma festa cada vez que descobria um pelo novo no bigode, tinha a ideia romântica das letras.
Era um tempo em que se liam livros bons.
Esta profissão parecia-me nobre. Só me apercebi da minha inutilidade vinte anos depois de juntar mecanicamente palavras. E já foi tarde, desisti.
É bem possível que venha a morrer antes de chegar à reforma, o que me vai facilitar muito o futuro.
A cama, alguém ficará com ela já que está praticamente nova, como disse.
Também devo ser dos últimos, este trabalho não faz sentido. Praticamente já ninguém sabe ler.
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