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Eu escolho os homens


Gostaria de conversar com os deuses. Trocar imprecisões, as minhas com as deles, num fim de tarde num miradouro simpático de Lisboa.

Confidências mesmo, partilhar em cumplicidade pequenos segredos pessoais do dia a dia.  Eu arriscaria algumas vezes – poucas – um conselho, eles na sua experiência de deuses, e com o domínio que têm do tempo – eterno no seu caso - deixariam cair uma ou outra pista, para eu emendar a mão aqui e alí de algumas decisões (minhas) nem sempre felizes.

Sendo humano tenho sempre a desculpa de falhar, e também de aprender. 

É claro que no final (desse encontro numa esplanada) cada um pagaria a sua conta. Só assim vamos para casa descansados.

Eu tenho fins de dia mal conseguidos, em que me encaixaria facilmente num ombro amigo. Infelizmente – ou não – nenhum deus habita na minha cabeça, nem no coração – a morada que dei para me enviarem as cartas de amor.

Sobrevivo a essa ausência - muito decentemente diga-se - porque os meus níveis de felicidade e espiritualidade são preenchidos com os homens, as criaturas, algumas auroras e lusco-fuscos, e todas as coisas que fazem o desenho deste magnífico universo, e dos outros, que ainda não vi, mas estão nos meus planos visitar um dia.

Nesta espiritualidade humana, em que acredito, sou livre, sou eu, congemino despreocupadamente os meus pensamentos, ideias, opiniões, ensaio e pratico as experiências do quotidiano, acerto e erro, e consigo adormecer sem necessidade de justificações metafísicas.

E digo isto com a maior das confianças, de quem respeita os que se prostram na oração aos seus deuses.

Porque eu também rezo:

Aos homens, aos animais, às coisas, ao azul pristino do céu. E nestas orações - as mesmas, iguais  - genuínas, tolerantes e sérias, ponho toda a atenção e carinho na fé dos outros.

 Não me cai bem cuspir anátemas e ofensas. Prefiro um bom encontro de mãos!

Sinto-me assim perfeitamente à vontade para rejeitar com veemência os efeitos patológicos dos fundamentalismos de verdade única.

Já não me levam os empolgados discursos dos “religiosos”, no alto dos seus púlpitos, pairando distantemente sobre a multidão, empunhando as suas iconografias com movimentos encantatórios, apelando ao sacrifício humano  como prova do amor a deus.

Esses símbolos matam todos os dias milhares de pessoas, sem remorsos, nem consciência.

Para mim, simples aldeão sem pretensões de comprar a eternidade paga em dízimos na terra, todas as cores são bonitas, todos os hábitos nos ficam bem, qualquer cântico de paz, que baixe o ritmo cardíaco e espane as pequenas e humanas raivas, são bálsamos para a alma.

Sou portanto um não crente com fé numa religião sem jurisprudentes do dogma.

E assim, de uma forma bucólica e descomplicada vou deixando a minha pegada, com os cuidados de cuidar bem do jardim, remover as pedras que devem ser removidas, oxigenar bem a terra à minha volta, para os vizinhos que queiram jardinar flores de bom cheiro.

Palavras dos deuses escritas pelos homens? Incorporadas como corpos possuídos, ditadas em sonos febris, imprimidas a fogo na pedra? Aparecimentos virginais no meio do nada? Leis que obrigam à subjugação do livre pensamento? Chagas purulentas que gangrenam ódios, invejas, complexos de poder e de vilanagem?

Mártires!!!!??? Cilícios!!!??? Apedrejamentos!!!???

 Em nome de deus?

A minha religião diz-me que um beijo repenicado, um abraço apertado, e um sorriso involuntário a um ocaso arrebatador que nos apanha desprevenidos, esvazia a culpa do pecado, e por sua vez, liberta os homens dos empréstimos de longa duração a que os deuses nos obrigam para garantir um bom lugar no paraíso.

E essa é a minha missa diária.


Tudo o resto, é embuste...de alguns.


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