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O BARCO VAI DE SAÍDA

  O barco vai de saida, ai que pagode, Que vida boa é a de Lisboa… E vai de novo a barcarola, navegando ondas redondas, suaves, e musicais, transportando-nos, embalados e num suave prazer, na Arca da Esperança. A noite pôs-se linda porque sabia que ia haver festa. Um longo tapete vermelho que a cidade estendeu, a caminho do rio, para uma confraternização histórica: o Aniversário do Jamaica e do Tokyo. Por uma causa nobre e inclusiva, jovens e outros um bocadinho menos - seremos todos jovens os que sorrimos descaradamente -  juntaram-se a brindar, transportados por memórias do tempo - muitos e que bonito foi - agora juntos com os seus filhos, numa cumplicidade de festa e alegria. É verdade que a boa música é intemporal, mas saboreia-se mais em comunhão, à roda de um grupo e foi o que ontem aconteceu. O aniversário do Jamaica e do Tokyo. Os menos jovens, mas não menos actuais, reviram rostos conhecidos com as roupagens do tempo presente que agora veste as feições de cad

O Aniversário.

Talvez o Fernando, construtor de pequenos barcos que só navegaram na sua imaginação, protagonista da história que a seguir se conta nesse catálogo comemorativo, tenha conhecido Fernando Pereira, que um dia, ou por razões de clarividência empresarial ou esmagado por impulsos do coração, se tornou sócio fundador do Jamaica, no balancear dos tempos de grandes mudanças num país habitado por um povo melancólico. Foi há 53 anos. Trepidantes anos de aberturas e novas liberdades, quando a “noite” de uma Lisboa abafada e muito provinciana, estrepitou em fogos de artifício, que encheu de luz e diversão, um Bairro Alto e um Cais do Sodré bafientos e antigos. Bares de encontros fortuitos e navalha de ponta em mola, escancararam a partir daí as portas a uma nova juventude burguesa, a aprender a ser citadina, cosmopolita, dançando até às tantas, sonoridades que vinham de fora: crioulas, tropicais, caribenhas, quentes. De repente, as esquinas aguçadas, obscuras de luminosidades sombrias onde as put

Aqui para nós

Ponderei maduramente se deveria escrever estas palavras e expor o meu pensamento a esta comunidade de Figueiró dos Vinhos, que tão generosamente me recebeu. São os meus receios e preocupações e considerei um imperativo moral de partilhar com os outros, e que isso possa entreabrir uma porta de reflexão, diálogo e opinião. Vivemos num país onde a democracia não cedeu lugar à existência do espaço público (esse espaço foi ocupado pelos meios de comunicação onde os comentadores são os mesmos políticos que comentam, numa lógica de circuito fechado), anfiteatro aberto onde os cidadãos, com espírito crítico e pensamento responsável, pudessem desenvolver os seus direitos de cidadania e opinião. Esse espaço inexistente, resume-se ao círculo mínimo dos convívios eventuais nos cafés e nos bares, aos chistes, nas festas das comunidades, mais em jeito de dizer mal por dizer mal, do que o sentido adulto de manifestar e dar a conhecer o pensamento pessoal para se frutificar na conversa, avançando

Adega dos Passarões

Imaginando o oeste longínquo - o faroeste -, salpica-nos como um instantâneo, a imagem do “ Saloon”, um local de encontro, bar, lupanar, uma hospedaria e residência penúltima antes da cova, dos que tinham o azar, ou a aselhice da lentidão, ou falta de acerto, na pistola pesadíssima que desembainhavam dos coldres pendentes nas ancas, e que chegavam com um atraso fatal ao momento do tiro, matando os desajeitados e reafirmando a vida dos que acertavam no momento devido no gatilho. Esse faroeste é o dos filmes dos vaqueiros, das terras sem lei, dos índios que tinham os melhores cavalos, selvagens como eles, os que melhor se vestiam, longas tiaras de penas vistosas, olhar indomável, mas eram os que perdiam sempre. Parece que existiam para isso mesmo: perderem ainda mais do que os desajeitados da pistola, que ainda assim eram brancos e estavam acima na hierarquia das espécies humanas criadas pelos deuses, e devidamente estratificadas, para não haver mais conversas nem atropelos de poder.

Fonte das freiras

  Ir rompe das entranhas da terra, força bruta, uma mina de águas. Grito de vida, apressado caudal desvairado, atrás da gravidade, vai dar de beber a outro mosteiro, de portas fechadas, restam os fantasmas dos seus habitantes contemplativos. No pequeno largo onde existe essa mina, existiu antes um convento de freiras em recolhimento e prece. O tempo é um carrasco imperdoável. Carne e o espírito esfumam-se, as obras de pedra e outras têm vidas mais prolongadas. Ficou uma parede com o recorte de janelas e portas, mas é só uma parede, de um lado e do outro o vazio, o nada, como que a dizer que tudo é efémero e em poeira se transforma. E isso nada tem de religioso, espiritual que seja, é uma evidência natural dos sedimentos do tempo. Nada mais. A alguns, atentos, sintonizados, poe-nos em sentido: a existência é curta, sejamos decentes, connosco próprios, com os outros, com o que encontramos nessa natureza tão esplendorosa que não merece aproveitamentos vãos, merece cuidados e afagos. N

La Pigalle, Figueiró dos Vinhos

Alguém já disse, nos altos de muita sabedoria, ou de convívio privilegiado com os deuses, que as igrejas, sejam humildes capelas, sejam catedrais cheias de retorcidos gongóricos, são os eixos do mundo. Explicand: a querer dizer que os locais de culto foram construídos em pontos sensíveis do planeta terra, funcionando como pontos ou de convergência de energias ou de expansão das mesmas. O que explicaria serem lugares onde se experienciam sensações, que nos reconciliam e unem ao universo. Isto é o que alguém já disse, dizendo também que o sagrado, o espiritual, estava nisso, e daí a entrar-se numa polémica sem perspectivas de saída limpa, é um passo minúsculo. La Pigalle , é uma praça e um bairro, em Paris. A sua história picante começa em 1881 com a abertura do cabaret Gato Preto . Em 1885 Maxime Lisbonne (nome curioso) de regresso na Nova-Caledónia onde tinha sido condenado a perpétua e a seguir amnistiado, abre a Marmita, onde apresenta espectáculos ousados e acaba de inventar o st

O Homem da cigarrilha mortiça.

   U m Morgado, é o que é. Ou, parece que é. Acabado de entrar, ou de saída, de uma novela bucólica, romântica, um ambiente do campo, florzinhas, e zumbidos, e vida parada e pacata. Um personagem das Pupilas do Senhor Reitor, ou da Morgadinha dos Canaviais . Quase um lorde, visto ao longe. Todo o ano, indiferente a tanta coisa, que até ao tempo, às suas condições, de bom ou mau, ou ameno, com o mesmo atavio. Bota de carneira, ou imitando; calça escura que pode ter sido fazenda com uma cor específica, que já não tem; e casaco. De veludo. Já foi creme há muitos, muitos anos. No cocuruto, que bem enterrado, nela, na cabeça, uma qualquer coisa objecto. Pode que tenha sido um boné, uma boina, um simples gorro. Totalmente indiferenciado pelo uso contínuo. Dormirá com ele? É possível. Já não é um adereço, é um apêndice. E uma esplêndida – se não fosse despicienda no tamanho – cigarrilha. Não se vê fumo nem cheiro, apagada estará. Uma reentrância no ar vazio, colada à boca, que no se