Todos os dias, no minuto certo da hora certa, ele regista no relógio do ponto a sua entrada na repartição. A repartição de que se fala chama-se o Instituto das Boas Ideias, organismo que o governo criou, não que tivesse para eles sido uma boa ideia, mas porque, num recente discurso à nação, o primeiro-ministro, pressionado pelos jornalistas que não largam as presas - mesmo as inocentes - para se ver livre das críticas que sobre si recaiam, anunciou que convidaria todo o povo a enviar ideias boas (para uma entidade que o governo iria, para agilizar criar imediatamente), ajudando assim o governo a governar melhor e com maior cumplicidade dos seus eleitores.
O senhor Aparício, que trabalhou desde catraio na função pública
(entrou como moço de fretes, tinha ele os seus quinze anos), funcionário
exemplar, transitou para este novo instituto, e estava orgulhoso disso. A sua
função, fundamental, é de receber o correio das ideias e separá-las e colocá-las
numa das três prateleiras na sua escrivaninha, onde não há mais objectos senão esse
arquivador (ah, e uma caneta, todas as secretárias têm de ter uma caneta, não vá
ser necessário apontar alguma coisa para se vir a fazer, e que no turbilhão do
expediente diário se esqueça).
É ele, que decide a categoria de cada ideia que recebe, podendo
escolher entre: Ideias mais ou menos, Ideias boas, Grandes ideias, e dessa
forma separando-as, coloca-as na prateleira respectiva com a classificação por
ele atribuida.
Feito este trabalho, diário, nada mais acontece, o senhor Aparício
cruza as pernas – hábito que tem desde pequeno e quando se senta a uma mesa – e
lê todo o Correio da Manhã. É a sua forma de achar que tem uma visão do mundo.
Intervala para almoço, na cantina de uma Direcção Geral que fica no
mesmo edifício e sem pôr mais ou tirar menos, não falha o ponto certíssimo em
que bate o minuto estabelecido como tempo de saída e final de mais um dia de
trabalho (tem uma folha de ponto irrepreensível e já louvada).
Neste novo Instituto, das Boas Ideias, só trabalha o senhor
Aparício e ele foi directamente escolhido pelo senhor primeiro -ministro, que o
conhece de sempre como contínuo que o tem acompanhado na sua carreira da coisa
pública.
O senhor Aparício é um homem apreciado pelas suas qualidade de
abnegação, correcção no trato, compreensão do papel fundamental de uma boa
administração pública, para uma melhor implementação das excelentes ideias que
os senhores ministros e também os senhores secretários, e até alguns
assessores, têm todos os dias, que a
somar com as novas boas ideias do povo, dá num jorro de abundância, uma
catarata mesmo, uma riqueza nunca vista.
O Senhor Aparício tem um lema e di-lo de boca cheia, sem pejo:
«Prefiro não fazer», e por ser assim e honesto porque diz o que pensa, ganhou
este lugar invejado por muitos, onde recebe todos os dias Boas Ideias, todos os
dias as troca de prateleira e classificação porque estão sempre a chegar, e aí
ficam, até que o senhor Aparício se reforme ou entretanto o Instituto se
dissolva por alguma razão que desconhecemos. A correspondência só sai das
prateleiras para o cesto dos papéis, quando as prateleiras estão cheias, de
boas ideias, e têm de ser renovadas, por outras ainda melhores.
O senhor Aparício «prefere não o fazer», e está ele na sua razão,
ou seja, não faz ele, e bem não o faz, que de Boas Ideias está o mundo cheio. O
O que são precisos são homens de acção, como o senhor Aparício.
Na literatura existe uma pequena história muito parecida, a do
senhor Bartleby, o escrivão. É pouco provável mas pode ser que sejam
familiares, ainda que afastados na distância e no tempo, ou então são o que se
designa por almas gémeas.
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