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O SOUSA MARTINS

 

A minha avó Maria das Neves foi uma mulher do seu tempo, supersticiosa e crente. Por via de dúvidas, assinou uma apólice que lhe cobria todos os riscos e danos, subscrevendo fenómenos animistas, espiritas e mágicos, ao lado de episódios de fé, produto acabado de uma igreja séria, com culto reconhecido e validado, deuses e santos com provas dadas e milagres devidamente reconhecidos por um colégio rigoroso e quase cientifico de clérigos com muita prática em reconhecer fenómenos milagrosos como episódios do divino, sendo por isso mesmo especialistas.

A minha avó fazia promessas à estátua do Sousa Martins, no largo dos Mártires da Pátria, estátua essa que é o maior altar de Lisboa, em céu aberto, do culto do paranormal em versão português suave. Uma coisa é certa, se há tantos (vêm da província até) a colocarem à volta da estátua fotografias de entes queridos, pedidos em verso e em prosa escritos em tabuinhas, braços e pernas em parafina, cabeças em parafina, órgãos em parafina, alguma coisa o Sousa Martins terá feito, para continuar a ter, depois de morto, o consultório cheio.

Os estrangeiros que por ali se misturam com os devotos, não percebendo os nossos códigos, julgam que aquelas manifestações são um culto de patriotismo. Está ali a estátua de um herói nacional. E dos braços, dos pés e dos fígados, não estranham, porque cada povo tem as suas fixações mitológicas, e os latinos, sangue quente e cabeça dormente e por vezes pouco centrada, são muito temperamentais.

A minha avó era adepta dele assim como da missa e de ter sempre, para todas as ocasiões e necessidades, uma reza própria, que verbalizava em voz alta, reza esta acompanhada por uma mezinha que ela lá sabia. Era fã do azeite, disso não restam dúvidas, porque me lembro bem de ter o corpo besuntado com esse unguento e com outros odores inidentificáveis, assim me acometesse de catarro, gosma, anginas inchadas, ou qualquer outro achaque, que quase sempre me acontecia quando a visitava, vá-se a saber porquê.

Não sei se resultaram ou não (as mezinhas), estou certo que não descobriu a pedra filosofal, ela faleceu como todos os mortais falecem, e não me lembro, nem remotamente, de ouvir as trompetas celestiais, nem um cortejo de anjos e potestades celestiais, a celebrarem a sua entrada nos portões do paraíso, onde certamente foi recebida por Deus em pessoa, coadjuvado pelo Sousa Martins, raio de homem, que conseguiu chegar a santo e ganhar asas.

Pelo sim pelo não, ainda não cheguei a prometer nada em frente da estátua, mas quanto ao azeite, bebo-o e tenho a convicção de que per os faz mais efeito. Quanto ao Sousa Martins, lá vai dando consultas (o homem deve estar rico) e no céu até já há quem olhe para ele com inveja, magrizelas do catano, mexe um dedo e cura uma bílis ácida. Até parece Deus.

A minha avó, certamente com pena sua, não foi canonizada, nem uma estatueta lhe fizeram. No entanto se lhe derem mais uma oportunidade, mais uma vida na terra, pode vir a chegar ao tendão de Aquiles do santo do Campo de Santana e eu, todo orgulhoso, por ter uma avó agraciada em partes de corpo em parafina, curandeira reconhecida e facilitadora de comunicação com o além. É que com familiares santos, mais perto ficamos de também virmos a ser canonizados e eu gostava mesmo de operar alguns milagres, que cá os remoo em mim e não os vou contar, não vá um dia ter essa capacidade e assim já tenho alguns em carteira.

Não me importava nada de ser santo, aquelas vestes, tipo balandrau, até aos pés, é que não aprecio. Por que raio os santos não são apresentados com calças ou calções? Não digo ganga, mas bombazina, vá!

 

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