Avançar para o conteúdo principal

O ÓSCAR, CÃO

 


Já falei dele, mas nunca é de mais.

Gostamos de nomes pouco comuns e não diferenciando espécies animais – daí o incomum, quem é da família é da família -, damo-nos por vezes nomes excêntricos.  Lembro-me do tio Tertuliano, da tia Florinda, da cadela Maria Balbina, do cão Ancónio  - que depois, por consideração à  minha mãe que só conhecendo o nome Paulo, ter em casa um cão com o nome desses só lhe iria complicar ainda mais a vida – , que se passou a chamar  Óscar, nome que o meu sobrinho mais novo veio a ganhar, e quando souber disto não sei se irá gostar. Do Óscar, o cão, fui parteiro e coveiro, o que me extravasou de alegria, e secou-me de tristeza. Dei-lhe vida e tirei-lhe vida, e nunca quis ser deus, foi o mais próximo que estive e não quero para mim esse desígnio. Assistir à sua alvorada e ao seu crepúsculo, foi forte, e se é para sofrer, antes humano do que deus. O fim da sua história abriu uma ferida que doeu a cicatrizar.

Quando os meus pais, livres dos filhos, começaram a perceber que a ocupação das horas do dia, estica-as e são um nunca mais acabar, o meu pai sem nada para entreter, a minha nunca teve com que se entreter, e os dois de repente, olham um para o outro depois de não sei quantas dezenas de anos sem o terem feito e se assustam com o que veem, o fastio começou a azedar e era tempo de lhes encontrar uma tarefa que os mantivesse distraídos, sem essa necessidade, agora premente, de se olharem todos os dias um para o outro.

Ofereci-lhes o Óscar, um Épagnoul Breton, cão com um certo pedigree, francês e que tinha uma grande fineza no trato. Era, o que se pode chamar, um pachola, e só mesmo um cão assim podia ter uma vida imperturbável e feliz, convivendo a diário com um dono a roçar a fronteira de uma inquietação irritativa e permanente, e uma dona, aparentemente num estado igualmente permanente, mas de transe meditativo, com momentos fugazes de remordimento, amargura e queixas existenciais.

Aguentava tudo, e não sorrindo, parecia que sorria. Foi durante os anos que viveu, o membro mais equilibrado da família e contribuiu para obrigar o meu pai a sair de casa e andar quilómetros todos os dias a passeá-lo, e a minha mãe a aprender que todos os seres sejam canídeos, humanos, o que sejam, têm de comer a horas certas e várias vezes ao dia, e que alguns, até apreciam uma boa comida: que “há mundo” para além da meia de leite, do pastel de nata e da sopa de feijão encarnado (alimentos que o Óscar comeria se lhe dessem, e devem ter dado).

O Óscar foi o seu primeiro neto, e como está nos regulamentos, estragaram-no com mimos. E ainda bem, foi uma luz intensa e persistente que aqueceu a casa e também os seus corações. Deu-lhes o Óscar, muitos – que são sempre poucos quando partem antes de nós os que amamos - , anos de alegria, e acabaram por ter amado esse cão único – até parecia que falava, o malandro –  grande companheiro. Era ele o adulto da casa e pôs-lhes a vida nos eixos.

Eu, assim como lhe dei a primeira mão para ver a luz do mundo e o encanto da vida, assim o levei ao colo, tão velhinho, tão cansado, para o sono definitivo. E ninguém diga que se suporta a morte e a separação definitiva de quem amamos. Fingimos. Nada mais do que isso, mas alguns não sabemos fingir bem.

Nunca conheceu uma trela: o meu pai era um anarquista, e mesmo perdendo o Norte, foi ele, muitas foram as vezes, que guiou o caminho dos dois para casa.

Era tão bonito o Ancónio: Óscar.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,