Uma deusa, num pedestal. Cinquenta quilómetros, com as voltinhas todas, montado numa Honda Amigo, com pedais, mas artilhada: o escape roncava como um leão. Deixei nesse dia as aulas a falarem consigo próprias, matemática e física, eu que queria Letras mas não pude porque para o meu pai, ou era Engenharia, ou Económicas, ou Direito, e o resto era conversa, e eu a achar que o amor se sobrepunha a tudo isso. E fui atrás dele.
Nunca mais lá chegava, e o amor a chamar-me, e eu apressado e desajeitado nestas coisas do amor, tudo era novo, a primeira vez, e a querer atender ao chamamento. A bicicleta motorizada a dar o que podia, honesta nos seus limites, íamos para aí, no máximo, uns trinta por hora. E o vento, que seja a que velocidade se vá, está sempre a fustigar-nos, a dar-me estalos na cara, como se estivesse montado num foguete norte-coreano.
Era tão avassaladora a vontade de lhe manifestar o meu amor primeiro, ou paixão, ou o que se lhe dê nome, nessas gradações de um coração arrítmico e muito palpitante, porque era a primeira vez, e na primeira vez, vai-se sempre a apostar que é para a vida toda, que eu avançava nervoso de que a minha fiel Amigo, não me iria deixar mal nesse encontro decisivo para o resto da minha vida (e dela também, a Honda Amigo, pois se eu encontrasse naquele dia o amor, teria que trocar de meio de transporte, já que a motorizada só tinha o selim do condutor, e nem eu, nem a minha mais do que tudo amada, quereríamos passear com ela de glúteos assentados no depósito da gasolina).
E os idiotas dos carros e as histéricas das camionetas, pindéricas, sempre a apitarem, quando nos ultrapassavam, sem perceberem a urgência do amor. Foi tanta a demora em chegar, que quando finalmente chegámos aos aposentos da nossa Dulcineia, o dia estava já a despedir-se.
Circundei a sua casa, apitei várias vezes, apesar de saber e fingir que não sabia, que o som do apito da minha motocicleta era pífio e desmoralizante, e ela, gloriosa e a mulher- rapariga mais bela que eu já tinha visto em toda a minha vida recente e ainda assim não dando hipóteses ao futuro de encontrar outra ainda mais bela - era esta -, veio à janela, olhou primeiro afastando a cortina e depois abriu a janela e pousou-se no beiral a olhar para mim.
Derreti-me. E parvo que sempre fui, nem um verso rebuscado, uma declaração de princípios, uma palavra que fosse. Nada. Só silêncio, mais aquele roncar incomodativo da minha Honda Amigo. Esparramei-me com um sorriso imbecil dos meus dezasseis anos.
Voltei para casa, sabe Deus como, que nem me ajudou, podia ter sido condescendente com a qualidade do meu amor pelo próximo.
Podia ter sido o amor da minha vida, nem o nome lhe perguntei, fui lá porque o primo dela, meu amigo perverso me tinha garantido que tinha uma prima, uma princesa, que por viver afastada se tomaria de amor incondicional pelo primeiro que lhe fosse fazer a corte, resgatando-a da sua janela no primeiro andar de uma moradia murada e fria.
No Barreiro.
Voltei de mãos a abanar, mas ingénuo que continuo a ser, ainda hoje leio o Quixote, e vivo com intensidade as suas aventuras, tendo trocado a Honda Amigo por um burro, que sendo lento como esta, teoriza no entanto pensamentos profundos e existenciais, e assim, os dois, andamos por aí à cata de donzelas sexagenárias a quem lançar poesias de quebra-coração, para o alto dos seus varandins inatingíveis.
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