Foi numa manhã de primavera que a conheci, e gosto que tenha sido nessa manhã e naquela ideia feita do tempo da renovação da vida que se cola a esta estação do ano. Foi há uma vida que esse dia e essas condições particulares aconteceram. Agora, já está tudo nebuloso e intermitente. A visão e a memória.
Gosto que tenha acontecido aquele dia assim. Na despedida do mês de Abril, quando o sol, nos intervalos dos plúmbeos dos céus que se resolvem da chuva até que o outono dê de caras, que começa a acenar-nos com a promessa de tempos mais despejados e calorosos. Há dias de Abril como não os há noutros momentos do ano. É o mês da renovação da esperança. Da utopia da igualdade. Da quimera da liberdade.
Fui cedo, ao romper do dia, para conseguir um bom lugar. A feira da Ladra, levanta-se com a noite, quando toda a cidade ainda sonha sonhos e pesadelos, sabendo que amanhã é sábado.
Seriam umas sete horas da manhã, quando estendi uma toalha de mesa, cor carmim e com relevos brocados, pela qual a minha mãe, inexplicavelmente, tinha um interesse especial, e se calhar por isso mesmo, para honrar esse particular carinho que ela lhe dispensava, estendi-a ritualmente sobre as pedras da calçada, mesmo ao lado da porta principal do Casão Militar, local previamente estudado como ponto preferencial de venda, e sucessos garantidos. Espanei os meus artigos, inchado de confiança que sairia dali com os bolsos cheios.
Discos vinil, livros, cassetes e um bricabraque, uma caldeirada, de roupas da minha mãe - de que destaco, uma touca de praia de borracha com pedúnculos - um covid, tal e qual – alguns objectos decorativos, de gosto muito duvidoso, que prolongavam em sofrimento a sua existência na nossa casa, indivíduos sem sensibilidade para decoração, e para rematar, um baralho de cartas, surrado e surripiado ao meu avô e com o qual ele se apropriou por mérito próprio do título de campeão do jogo da bisca, na junta de freguesia de Algés e Dafundo, em jogos por eliminação, todos os finais de dia, no jardim público ao lado do café Ribamar, agora, uma cloaca de comida rápida.
A minha soberba triunfante caiu por terra, não vendi nada e nesse fim de semana vi-me obrigado a recolher a casa sem possibilidade de ter posses para ir dançar ao som da música de Fausto, e dos Talking Heads, no Tóquio, se tivesse a sorte, uma lotaria, de o porteiro, por distração ou bonomia momentânea me deixar entrar. Às vezes ele tinha umas convulsões de consciência e fechava os olhos e deixava entrar meia dúzia de putos, que são agora passados todos estes anos, os que mais saudades têm desse Cais do Sodré de putas e marinheiros, amantes nostálgicos desse lugar mágico da cidade, fenecido pelas estratégias de marketing e vendas turísticas.
Não vendi nada, mas conheci-a. E cai fulminado pela primeira paixão de febres elevadas e persistentes. A virose foi tão intensa que fomos os dois, de mão coladas e entrelaçada nos dedos todos, feita de duas mãos numa mão única, e as que estavam livres a levantar o alto que podiam, um cravo vermelho e viçoso e simbólico, por essas ruas fora, sorrindo ao povo que nos via passar, todos a comemorar o primeiro, Primeiro de Maio das nossas vidas.
Esse tempo passou, esse amor não sobreviveu, as ruas já não são as mesmas, os lugares perderam os nomes e a identidade, e nós, eu, revelo esses episódios convicto de que, apesar de tudo, Abril é um mês especial, e fosse eu mais esperto, poderia ter feito mais-valias de jeito e proveito, na Feira da Ladra.
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