Por vezes visita-me a memória de um calor que já não existe, um calor materializado, com uma muito particular sensação de temperatura, de cheiro próprio, com contornos, como se não pertencesse ao reino das sensações subjectivas, mas ao reino dos seres. É um calor de quando era pequeno, naqueles lentos dias de verão, algures, não sei se no Norte se no Sul, uma casa, talvez de férias, na hora da sesta, o silêncio a conseguir ouvir-se, um zumbido ínfimo, se calhar era o zumbido do calor e eu a achar que era o silêncio a sussurrar conversas. Já não há esses calores.
Eu resistia ao torpor do ínicio da tarde,
tentava não dormir, e abria as portadas verdes da janela com ripas, e convidava
o calor a entrar. Enchia o quarto
sombrio de luz. Brincávamos juntos, a inventar enredos com dois personagens,
ele e eu. As crianças não conseguem estar paradas, menos as de natureza
contemplativa, que se manifesta precocemente, mas só mais tarde os efeitos se
farão notar. Brincava não sei agora como, não vejo como se pode brincar com o
calor. As crianças são capazes de tudo o que seja inimaginável, mas o que é
certo é que criam coisas mirabolantes e dão-lhes vida e por isso não se
aborrecem: entretecem indefinidamente ocupações para o seu tempo, que é ainda
eterno.
Quando no momento presente me vem essa memória,
a sensação não é plena, é vaga, boa, mas de cor esbatida. Será assim porque já
não sou criança e não consigo imaginar sem mácula e no pensamento puro, como
pela primeira vez, o sol e nós os dois, a brincarmos no quarto incaracterístico
e esquecido de uma casa possivelmente de férias. Eu faço figuras com as mãos e
os dedos e ele projecta sombras e luz nas paredes brancas. É um fartote. Que
companheiros nós somos.
Na verdade, as crianças sorriem com pouco, e os
adultos sorriem de pouco, e foi essa a linha de fronteira, que nos separou para
jamais desse tempo em que o calor saltava à corda e jogava berlindes nas covas
minuciosamente escavadas para jogos épicos e intermináveis.
Hoje as sestas são enfadonhas.
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