A bola tinha uma redondez duvidosa, com altos e baixos, que não beneficiavam nem uns nem outros. Os resultados não eram influenciados pela sua irregularidade. Nem havia interesse pelos resultados. Estava feita de trapos e sobras, restos de roupa surripiados das mães e das avós. Remendos dos remendos de vidas difíceis.
A bola era o eixo do mundo, um eixo móvel, naquele pedaço de
rua também ela incomum, quase mal-acabada, cuja monotonia apesar de estar no
mapa de uma cidade, era apenas interrompida por uma mula ocasional e entediada,
que transportava, para cima, para baixo, a carroça do leite, indiferente à sua
vida e a dos outros. Naqueles tempos parecia que não havia gente humana na
gente que frequentava as ruas. Os transeuntes, recolhidos, ensimesmados, passavam
apressadamente, encostados aos muros e às paredes das casas, procurando
sombras, mimetizados, sublinhando o seu anonimato. Vinham e íam, a fazerem-se
irreais, fumos, sem contorno nem rosto. Eram tempos de medo.
As crianças, umas descalças e ranhosas, outras com
sapatilhas de sola gasta, mas igualmente ranhosas, passavam o dia na rua e
brincavam, as que não estavam obrigadas a trabalhar nos trabalhos dos homens,
escravos dos escravos. Jogavam à bola partidas intermináveis, a fazerem-se
ídolos de uns e outros, tão depressa a pôr um mais goleador em ombros, como a
gozarem estridentemente com os frangos e as fífias dos menos talentosos. Recolhiam-se, quando, já noite, os pais
voltavam das tabernas embriagadas, regressando ao que chamavam casa para a
janta e para descarregar nas mulheres e nas crianças a raiva das vidas corroídas
pela acidez das condições, miseráveis e porcas.
Iras, impropérios e violência física.
Os ídolos das crianças, os grandes jogadores da época,
tinham os seus empregos e jogavam à bola aos fins de semana, e como não havia
outros interesses senão o prazer do jogo, sem mais consequências, era bonito
ver um jogo de futebol. Os jogadores das equipas que ganhavam naquele domingo, recebiam
como prémio, uma sanduiche de carne assada, besuntada a óleos usados e abusados
de tempos primordiais, nas mesmas frigideiras que nunca saiam do lume, e um
reforço de vinhos: carrascão, vinho de taberna, a mais não se chegava e já não
era nada mau.
Hoje, sentado numa esplanada num clube recreativo num bairro
ainda não contaminado pelo alojamento corrosivo de curta duração, nem mirones
de camisolas de alças a tirar compulsivamente fotografias aos cães do bairro,
como se no sítio deles os cães não fossem os mesmos a levantar a pata para
mijar na árvore ou no pneu mais a jeito, bebo uma imperial, com tremoços, e
vejo vagamente, no ecrã de grandes dimensões, pendurado numa moldura com flores
artificiais – como se a imagem viesse directamente da selva - um jogo de uma
equipa portuguesa com outra do estrangeiro.
Vem-me à memória, as histórias contadas desses tempos
passados, e é nestas pequenas coisas, a parecerem insignificantes, que a dor
lancinante e aguda da saudade nos deita temporariamente abaixo. Memórias de
caras que se esbatem e dos sons das suas vozes, cada vez mais difíceis de reconhecer,
quando os putos que pontapeavam essa bola disforme, foram o nosso passaporte
para uma existência, e os recordamos nestes episódios banais - para os outros- mas
não para nós.
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