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O ANCÓNIO

O meu pai organizou a sua vida em função do Ancónio, um cão Epagneul Breton que o filho mais velho, eu, fez o parto e cortou a cauda, como era prática nesse tempo. Tinha esse nome estranhíssimo, dado pelo meu irmão que na altura aprendia um pouco da anatomia do corpo humano, como parte da sua formação em Belas Artes, nome dado a um músculo ridículo e vá-se saber porque o meu irmão resolveu dar esse nome ao cão que não teve nenhuma culpa de ser chamado publicamente dessa forma bizarra.

Os filhos saíram de casa – se soubessem o que os esperava, tinham ficado até aos quarenta - e considerando que lhes faltava aos pais, uma razão de ser, um objectivo existencial, deram-lhes o cachorro. A minha mãe, como sempre fez de forma exímia, omitiu a existência do bicho, e se ao filho mais velho, eu, chamava pelo nome do seu mais que tudo, o meu irmão, o animal, apesar de Ancónio, também passou a ser e muito chamado à razão com o nome do meu irmão, que a minha mãe, por obsessão, teimosia, ou diletantismo, deixou como marca forte na sua existência, tratar todos os seres masculinos pelo nome do filho mais novo.

A frase que ela mais me disse na vida foi: “Ó Paulo, sabes alguma coisa do teu irmão Paulo? Ando tão preocupada com aquele rapaz!”

Por seu lado, o meu pai, enfadado com a extensão alarmante de um dia de vinte e quatro horas para preencher, encontrou no cão, pacholas, como se diz na gíria dos tutores de cães, o seu parceiro para o bem e para o mal, e ainda, para a facilitação das suas necessidades básicas, que mesmo que muitíssimo inteligentes, aos cães não lhes é dado o prazer da utilização de uma casa de banho com sanitários.

Passavam o dia na rua, enquanto a minha mãe, recolhida, a fazer um enorme esforço para se lembrar do nome daquele filho que não era o Paulo, mas que ela, à falta de melhor, chamava assim, para simplificar as coisas da vida.

O meu pai, da negação à aceitação de um animal doméstico em casa, passou, num reviralho alucinante, a viver em função do Ancónio, e ele, agradecido, como todos os cães, seres ingénuos e puros!

Pela manhã um longo passeio desde a praia de Algés, onde faziam o aquecimento, as primeiras corridas loucas do jogo de apanhar a bola, até a Torre de Belém, onde o cão, como todos, adorava mijar e mijar cada meia dúzia de passadas, na relva fresca onde os turistas se deitam a gozar o prazer do sol que não têm na terra deles e muito menos com vista desafogada. O meu pai, homem que apreciava a conversa e o convívio com estranhos, desemperrava, contava ele, a língua, comunicando-se banalidades numa mistura de linguagem gestual com muitas carantonhas e gestos manuais e a meia dúzia de palavras em inglês, Francês e Espanhol que ele usava, mesmo com significados longe de serem o cânone desses idiomas, o que interessava era o convívio e os sorrisos nos rostos, sinal definitivo da eficácia da comunicação.

Dadas as voltas todas que tiveram de ser dadas, passeio agora o meu parceiro Darwin, ele muito mais credível do que eu, e lembro-me desses episódios já afastados no tempo. A minha mãe já não pode chamar ninguém por “Paulo”, já esgotou a sua possibilidade de falar; o meu pai, já não fica nervoso com o facto simples de estar vivo, deixou de estar, e ter um cão para passear, e já não tem de disfarçar que não era nada com ele, quando o cão, que tinha o seu carácter, lhe dava para mijar nas apetitosas pernas de uma cámone, ou mesmo à porta de um qualquer estabelecimento comercial. Viajaram os dois para o grande passeio, a morada final.

Agora sou eu a passear o cão e sinceramente, apesar de gostar, mas não ter estrangeiros na zona para ensaiar discursos trilingues, começo a ficar um pouco preocupado com o andar das coisas. Elas não acabaram nada bem para os que me antecederam, e eu temo ir pelo mesmo caminho. O Darwin não quer saber, adora mijar livremente e está-se marimbando para as convenções.

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