A mãe contava inapropriadamente, animada e não se poupando a arrebites - deixando-o embaraçado quando assistia, vá-se a saber as vezes que ela o contava sem a sua presença -, que o parto tinha sido difícil e de desfecho quase fatal, neste caso para ela, que assim tivesse acontecido não o poderia contar a ninguém e morreria com ela. Ela a encaminhar-se para o além esvaindo-se em sangue, ele sem respirar, muito tempo, arroxeado já, até que lá se deu autorização à vida, para aproveitar essa oportunidade, a de viver, uma lotaria que calha na conjugação dos astros e dos búzios, a poucos. Todos sobreviveram e a história acabou bem.
Tenha
que efeitos tivesse tido essa anoxia no seu futuro e em situações bem
específicas em que precisava do oxigénio todo para decidir o melhor, a ideia
atroz e muito injusta, de ter sido quase o responsável pelas perdas anormais de
sangue da sua mãe, fizeram-no como se veio a fazer nem muito nem pouco
encorpado, o suficiente. Do que não se livrou foi de uma timidez mórbida e
bastantes erros de juízo no capítulo da inteligência emocional, que fizeram
danos colaterais e muita medicação.
Sobreviveu,
não interessa, e resolveu a questão considerando que a sua mãe era fraca a
julgar o carácter dos outros, ainda mais o do seu filho, que não tinha culpa
nenhuma na sua perda de líquidos vitais e muito menos na decisão biológica da
progenitora ter decidido esvair-se no preciso momento em que o filho ia nascer,
podia escolher outro momento, mas não.
As
coisas foram correndo e nunca mais se lembrou desse episódio primordial do qual
nem sequer teve uma memória directa, só por testemunhos do seu pai, que ao ter
contado ao filho o episódio, pela primeira vez, achou que estava ganha a
cumplicidade inquebrável da relação pai-filho que resistiria a todas as
intempéries que viessem. Estava enganado e a mãe, sua mulher, não necessitava
do testemunho do marido para anunciar essa quase catástrofe ao universo,
estivesse este na disposição de a ouvir.
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