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Encostados aos parapeitos das janelas, uns com a cabeça de fora, uns esticando a cabeça o mais que podem, pequenos, apoiando os queixos nos beirais para se aguentarem, uns mal se vendo os olhos, inchados de curiosidade, a saltarem das órbitras se puderem, ávidos para assistir ao que se passa, não vá caírem das banquetas onde equilibram os bicos dos pés, e perderem o lugar privilegiado. Todos a querer ver, ansiosos por serem os primeiros, para depois contarem aos outros que viram: estavam no local certo, à hora certa, a ver, são uns heróis. Ver a todo o custo e preço, mesmo que para isso se chegue à agressão, aos empurrões para desequilibrar os que estão no poleiro, e ocupar os seus lugares nos parapeitos das janelas. Querem assistir ao espectáculo, ao miserável entretenimento das misérias dos outros, uma projecção – que recusam a subscrever - das suas. E é tudo entretenimento, o que se passa na rua. Babam-se para assistir, serem meros espectadores, da vida a passar com os seus cortejos de horrores e dores e sofrimentos, e injustiças e arbitrariedades. Para depois contar ao jantar aqueles que não se abeiraram das janelas e não viram, os episódios das novelas que se esfumam com a noite a apagar os dias e no dia seguinte novas novelas há para contar. O sangue, o suor, as lágrimas, são adereços cénicos de palco, irreais, imitações. Tudo o que os mirones empoleirados veem são ficções, filmes bem realizados e com bons actores. Tão bons que até as crianças que choram e pedem paz, parecem mesmo estarem a chorar e a pedir paz, e os adultos que se sentem indignos e na mais baixa escala da humanidade, a serem torturados e mortos ao vivo, são tão bons que quase convencem os que veem das janelas, que são lixo. Até os soldados tribais com os olhos esgazeados e um rosto absolutamente medieval, empunhando a arma como continuidade e função única do dedo a premir o gatilho, até esses representam tão bem que parecem verdadeiros. Que existem mesmo, num lugar qualquer.
Num plano superior, alguém reposiciona os bonecos e recria essas encenações. É uma brincadeira com que passa o tempo: fazendo teatrinhos fátuos. Dando vida à sua imaginação fértil, o homem das marionetas todos os dias brinca assim e quando se cansa ou se aproxima a hora de descansar, passa com a mão sapuda por cima de tudo e desliga a luz fria do quarto.
*créditos da foto Museu das Marionetas
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