Começo
a tropeçar nas memórias. Do nada, saltam-me à frente. Reencontros agradáveis,
ou nem por isso. Umas aparecem coloridas, outras e preto e branco. Talvez se
tenham desgastado entretanto. Lembro-me dos primeiros anos, era Páscoa,
efeméride pesada, soturna, triste, que custava a passar. Não sendo praticantes regulares
eramos reverentes. No ambiente da época era o mínimo que se devia ser. Menos era
infração. Nos dias que antecediam a ressurreição, fenómeno que eu muito
admirava pela sua excentricidade e desfecho positivo, as pessoas ficavam ainda
mais sérias e reservadas. Em casa, as refeições eram ainda mais frugais. Não se
comia nem carne nem peixe, só bacalhau. Para a minha avó que estagnou numa
forma repetitiva – cinquenta anos pelo menos – no peixe frito com arroz de
tomate, a imaginação congelava-lhe nesses dias e ela só cozinhava arroz de
tomate. Domingo era o grande dia, do anho no forno, mas até chegarmos lá! A emissão
televisiva a dar os primeiros passos, já de si muito limitada, descontando as “conversas
em família” e pouco mais, era preenchida com missas, vigílias e a via crúcis. Fascinava-me
a solenidade daqueles actos e também a imponência com que os padres em todas as
suas hierarquias se apresentavam. Vim a celebrar muitas missas e fiz a via sacra
inúmeras vezes, com uma cruz de pau de vassoura velha que adaptei para o acto. Vesti-me
com uma casula vermelha feita de trapos que
havia por casa – a minha avó costurava para fora - e fiz uma mitra com papelões,
que ficou bastante apresentável. Não sabia
claro os nomes destas peças, informação completamente irrelevante. Tenho uma
noção limpa que nessas representações sentia-me profundamente investido nesse
papel principal e estava convencido que era o papa em pessoa. Se calhar era.
Com
o tempo cresci, brinquei a outras coisas, umas vezes mais convencido do que
outras. Esqueci-me da religião, essa é a verdade e não há como o dizer. Com o
tempo não tive fé, não a encontrei e sabe Deus quanto a procurei. De vez em
quando ainda ando às voltas com esse assunto, depois passa-me. Foi agora o caso,
deste momento inesperado, essa memória de infância, quando estava absorto em
compreender primeiro e depois preencher, um formulário esotérico da Segurança
Social. Revi-me menino, vestido como o primeiro dos cardeais num quintal da
avenida Afonso III, paredes meias com o cemitério do Alto de São João. O meu
cão Tôto como acólito único e incondicional, o cão mais religioso que conheci,
eu compenetrado, ele, a gostar da brincadeira.
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