O
faroleiro tinha como principio quando folgava, não se dar com ninguém, o que
facilitava a solidão em que um faroleiro vive. Não quebrava essa ligação
permanente, era a sua disciplina. Passando a maior parte do tempo calado,
quando estava em sociedade, para não alterar o seu quotidiano, vertia as
palavras para dentro e ouvia as dos outros. Não dizia nada. Encostava-se ao
canto mais remoto do velho balcão de madeira de carvalho do pub da aldeia e deixava-se estar por aí,
todo o dia, absorto, olhando não se sabendo se estava realmente a olhar para os
clientes, quase todos, os habituais e meia dúzia não mais. Alguns foram companheiros
de escola. Uma cerveja forte, áspera, acre, era a sua companhia. Assistiu nesse
lugar privilegiado a grandes acontecimentos históricos: anúncio de casamentos,
uma rodada pelo primeiro filho, divórcios, disputa de terras, mexericos corriqueiros
e cenas de pugilato, uma arte que se dá com o álcool e a exaltação dos ânimos,
infelizmente não místicos. De nome seu e sangues, ao faroleiro restava-lhe a velha
mãe, solitária como ele. Fez um filho, mal o criou, encalhou em si mesma e aí
está todo o dia sentada à janela a olhar para o nevoeiro quase permanente,
dentro e fora, invade tudo. Não se sabe do que está à espera de ver nessa
ranhura emoldurada num vidro que a separa da realidade. A vida de guardador de
barcos e protector de naufrágios do seu filho, não se compadece com a
constituição de família: requer atenção constante, uma entrega, abnegação. De
tudo o que viu e presenciou no pub em
anos de observação e no que a seguir intuiu no silêncio da torre do farol, o
faroleiro colou as peças do seu lastro pessoal. Com isso, achou sensato deixar
de verter palavras para dentro e resolveu dar-lhes forma, pô-las em papel, à sua
vista. Foi a decisão que tomou, para sair da anestesia. Recuperou do esquecimento
uns milhares de palavras e escreveu-as. Com elas construiu discursos para si
mesmo. As palavras nunca são demais. Quem o visse agora, que ninguém o vê,
veria um homem magro, de barba longa emaranhada. No alto do seu farol, agarrado
a balaustrada de ferro e fria e húmida, gritando monólogos para os espalhar os
ventos fortes que sopram no penhasco, dispersando os fragmentos do seu
discurso, na superfície espumosa e rebelde do mar. Para recuperar do tempo em
que era um homem de silêncios, deixou de frequentar o Pub. Sobre a sua mãe não há mais nada a dizer.
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