Marvão está mais perto do céu, para o bem e
para o mal. Para o bem, quando num dia despejado, sereno, ensimesmado de si,
estende a vista sem esforço maior, até uma enorme longuidão. Agarra os contornos
da mais imponente serra continental, maior, que temos: a Estrela; noutra
direcção vai-se quase até ao mar, pelo menos a saber-se que ele está ali,
prestes a chegar ao alcance da vista; noutra, os campos lhanos, meio monótonos,
a tomarem nos meses de verão as cores de uma extensa mantilha doirada, como alguém
disse do ilustre Branquinho da Fonseca, o homem das bibliotecas itinerantes da
Gulbenkian: “ a paisagem era amarela e
chata; o poeta deitou-se na paisagem e ficou amarelo e chato”; outra direcção
ainda, terras de Espanha, o estrangeiro que temos como nosso vizinho, os
melhores que poderíamos ter, irmãos.
Para o mal - que nunca fica esquecido-, em
dias de tempo carrancudo, recebe a borrasca antes das terras baixas, águas por
vezes diluvianas, primordiais, ventos sibilinos, estrepitando agudos sons nas
esquinas, fazendo ricochetes, transformando a intenção original de uma humilde
música de câmara, pouco mais do que um par de instrumentos, se assobio é um
instrumento, numa grandiosa orquestra sinfónica.
Num caso como no outro, mantém-se impassível,
guardiã, já passou por muito, purificada pelos ares mais puros, mais perto das
potências celestiais.
Por alguma razão da conjugação de vontades
exteriores ao entendimento, a vila recebeu na sua vida branca de casas
silenciosas, habitantes ilustres (também o Branquinho, da Presença, que já se
disse), homens de letras, artistas, sensibilidades afinadas pelas vibrações da
arte: a imitação na terra dos homens, da criação das entidades superiores, os
deuses.
Procuraram refúgio, fugidos do buliçoso
envenenado dos quotidianos da cidade, poluições que só se lavam fugindo para
longe.
Marvão é nossa e ainda bem que tem poucos
turistas. Habitantes parece que também. Não se veem nas ruelas estreitas, mal
se sente vida a pulsar no interior das casas, escondidas do mundo por finas e
belas cortinas de renda, feitas à mão, pausadamente, ao sabor desses ritmos,
por mulheres sem rosto que se dê a conhecer.
Os habitantes fecharam-se nas suas casas-mundo
e só frequentam o exterior -fantasmagóricos do bem - em noites de lua cheia,
quando os estranhos não se passeiam por ali, e eles, os da terra, podem
conviver saudavelmente soltando palavras que encadeiam conversas sobre o tudo e
o nada: redondamente iguais às conversas de qualquer grupo de homens em qualquer
sítio sinalizável na geografia dos locais por estes habitados. Nesses momentos
confraternizam, mas não os vemos porque não estamos lá em horas tardias.
Marvão é nossa porque a amamos, só isso. As
igrejas não sendo majestáticas, impõem a humildade das coisas simples e
pequenas, o castelo tem uma torre de menagem e muralhas a recortar as agulhas
da serra, sendo por isso idêntico a outros nas mesmas condições. Tem uma
pequena escola que se calhar não tem alunos, ou poucos, é pena, a criançada dá
muita vida a um local.
Comemos, um belo de um cabrito com as suas
batatas, a assistir com privilégio à apoteose e ao crepúsculo, ao espreguiçado
pousar do sol no horizonte longínquo que o vai acabar por engolir, deixando
rasto das últimas luminosidades do dia, que neste, por ser ainda fim de verão,
deixa o céu riscado de laranja e violetas, uma nostalgia empolgante para os
olhos e as almas onde eles prestam contas.
Em toda a extensão do que a vista alcançou, gostou-se.
Não se conta onde os turistas dormiram por ser o paraíso, e guardar o segredo
da localização deste local, é um imperativo, não egoísta, da maior sensatez,
não se vá estragar o estado ainda puro de algumas coisas, lugares e pessoas que
os fazem assim.
Comentários
Enviar um comentário