Naquela tarde, talvez por ser a tarde que
estava marcada, percebi que não seria possível. Não recebi nenhum aviso de
ninguém, o meu corpo não experimentou um estado físico diferente do habitual.
Para além da sua rotina de corpo a funcionar sofrivelmente bem, não houve
premonições, fenómenos de poltergeist. Nada. Estava como tenho estado nos dias
anteriores a este, e espero que os próximos e os que mais tenham de ser,
assistindo mansamente a um destes programas das tardes de televisão, dos que
desfiam episódios menos risonhos da existência de todos os indivíduos.
As coisas boas não passam na televisão, só
misérias. Mas as pessoas gostam, é o que pedem, atestar os níveis de tristeza,
com as experiências dos outros, cópias repetidas das suas.
Não abrem mão de ser
um elo dessa grande corrente universal da condição humana. Fazem cadeias de
amor por esses episódios baratos, rebuscados, quando não fazem nada pelas
coisas que realmente importam, queixam-se, é só.
Estou assim, porque do nada, levo com uma
depressão tropical em cima: tinha tantos sonhos para ele e não os consigo
entregar. O meu golpe de misericórdia. De tropical nada, antes polar.
Foi o dia em que envelheci, mais um salto na irremediável
evidência que morro agora mais cedo do que quando fui criança, e saio de cena,
sem que a minha presença tivesse sequer beliscado a harmonia ou desarmonia dos
locais onde gastei as solas dos sapatos. Fui uma procrastinadora, a minha
melhor profissão.
De um
momento para o outro. E eles, os filhos, não apanham essa diferença, que faz
toda a diferença: fiquei incapacitada de lhe dar todos os sonhos que sonhei,
juntei sôfrega de mãe protectora, privando-me de ocupar o tempo a sonhar com
coisas mais pessoais e de bom prognóstico futuro.
Ávida acumuladora obsessiva de uma herança
que se esvaiu sem mais nem menos. Baixou-me a clarividência de entender que
ninguém está interessado nos sonhos dos outros, não os querem para nada. Cada
um só quer os que faz para si mesmo.
Podem ser excelentes, os sonhos que sonhei
para ele, mas cheiram a mofo, demasiado tempo encerrados nas catacumbas da
minha cabeça.
Privações, pô-lo antes de mim, amealhar,
amealhar, para quê? Nada. Agora, estou inchada de um conteúdo sem uso:
bobinas inesgotáveis de sonhos.
Ele, egoísta como são todos, mandou-me as
ortigas com os sonhos que teci para ele. Não os quer, presumido de rei do
mundo. Anda por aí, a cem ou mais à hora, sem travões, até um dia, quem sabe,
que se lembre de tomar conta desse tesouro, o que sonhei para ele.
Pode ainda vir a tempo, pode ser que sim, ou
tarde de mais. Não sei se restará algum conteúdo para lhe dar: com o tempo a
passar eles vão-se borrando, deixam-nos a cabeça vazia, vazia que também já
está dos nomes com que conferimos a identidade das coisas. Até o dele e o nosso,
acabaremos por perder, os nomes. Vão-nos ser inúteis, e calamo-nos.
Foi tarde de mais. Apetece-me tanto
descansar. Ter ficado velha foi a coisa mais inexorável que me aconteceu, não
esperava isto para mim. Andei a vida a ser enganada pela esperança, essa grande
meretriz, que se não fosse uma pincelada última de decoro, diria ser uma grande
puta e posso dizê-lo que ninguém me ouve.
Ou será tudo isto um sonho que sonho? Não é.
Comentários
Enviar um comentário