Um piano tem 88 teclas,
brancas e pretas,
de madeira. As brancas são revestidas de marfim
(já não), ou um
compósito de plástico,
nome técnico; as pretas,
de ébano. No
tempo em que
viveu Mozart, era
ao contrário: as brancas eram
pretas e estas brancas. Há pianos de cauda e verticais, estes
mais bonitos, mas
pouco práticos de
arrumar. São instrumentos caros.
Há quem diga que são o instrumento musical mais completo, aparte
a voz humana,
claro, que não
é um instrumento,
ou então é, mas biológico.
O senhor A.B.
gosta de tocar
piano, de ouvido,
e na realidade
gosta bastante, mas não tem um piano e nunca tocou a sério em nenhum. No
entanto, tem dois
virtuais: um no
armazém da ourivesaria
onde trabalha e
o outro em
sua casa, mais
propriamente na casa
da madrinha, onde vive.
Diz-se que são
virtuais porque na
realidade não são pianos verdadeiros, são dois teclados de
88 teclas que ele desenhou e pintou numa cartolina. Fê-lo com rigor: desenhou-as
e pintou as teclas com as medidas e
a ordem certa.
E é assim,
de uma forma
acessória, que aprende a
tocar piano, todos
os dias afincadamente, em
todos os momentos
livres, porque tocar
piano, bem, exige
treino, prática e abnegação.
Como se pode
aprender música tocando
não tocando produzindo
sons verdadeiros, num teclado
virtual, é um pouco bizarro.
Ele diz que
sabe de cor na
sua cabeça todos os sons das teclas,
e quando ouve uma música, consegue identificar e
reproduzir o que corresponde a cada uma. Assim pode praticar, tocando com os
dedos na cartolina e ouvindo para dentro
o som que
identifica como sendo
o correspondente. Vamos
acreditar que é
verdade o que
ele diz e
que a coisa
funciona assim, até
porque na natureza
se encontra de
tudo, sendo mais avisado ter a mente
aberta e aceitar
a possibilidade de
existência de fenómenos mais inusuais.
Tem jeito dizem
os amigos, não
porque alguma vez
o tenham ouvido
tocar, mas pelas
dissertações constantes sobre
a matéria pianos
e música para pianos, que A.B.
faz. De resto todos eles estão muito longe de entenderem o que é a linguagem da
música. Mal chegam
à da palavra
dita e escrita.
A.B. em comparação, é um erudito, palavra esta que não atingem. Eles, e
é para isso que servem os amigos, acreditam que é um virtuoso, só de o ouvir
falar. O mundo todo não o conhece artisticamente, só uma pequeníssima
parte do mundo o conhece como balconista de
ourivesaria. No entanto, é uma questão de tempo e de ele ir praticando,
até ao dia em que vão pasmar pelo
seu virtuosismo que
emana da pressão exercida nas
teclas pelos seus cuidados e esguios
dedos de pianista.
Para já da
cartolina não se extrai
nenhum som, ele só
pratica, prepara-se para
o dia em
que sentado em
frente a um
teclado verdadeiro, confirme a
sua glória e tenha valido o esforço de anos e anos de treinos.
Neste momento só
ele e os
amigos sabem desse
segredo, preservando a sua intimidade e bom nome.
A.B. é ajudante de balcão numa
ourivesaria, na Rua dos Fanqueiros na Baixa. Foi
para lá como
aprendiz – que é
como se começa
-, aos doze
anos e meio,
rapaz quase a
ser homem e
ficou para toda
a vida, num
tempo em que quase tudo o que se fazia era para toda a vida. O patrão
não tem descendência e gosta dele, é possível que um dia a loja venha a ser
sua.
O universo funciona com
uma ordem e
um plano, mesmo
que dê ideia do contrário. O
negócio do ouro que é complexo e admite muitas ramificações e
algumas menos conhecidas,
tem as suas
hierarquias e muitos segredos.
Nesta cidade ainda desconhecida de turistas distraídos, os residentes revestem
camadas de muitas
classes e preconceitos.
Tudo se arruma no sítio certo. As grandes casas do
ramo, frequentadas por burgueses e aristocratas ficam ao Rossio e na Rua do Ouro. Aos Fanqueiros e em muitos vãos de
escada dos prédios das ruas, vão os
outros clientes, o da meia-libra
para os anos
do afilhado, dos anéis de noivado em conta, alianças de
casamento, das salvas de prata, mais no tamanho a tenderem para pratinhos de alianças.
A rua dos Fanqueiros é uma de terra de ninguém, linha de
demarcação, fronteira do bairro dos com o resto do cosmos: a cidade.
Vive-se na
época dos bons
costumes, do medianamente, do
portuguesmente suave. As
pessoas, andam atrasadas
em relação ao
outro mundo, mas não
o sabem, porque
não viajam e desconhecem línguas, mal se dão com a sua. O
Grândela e o Chiado são os mais famosos centros comerciais do país. As ruas da
Baixa e do Chiado, enchem-se de gente aos fins de semana, vêm para ver
as montras, apreciar modas,
degustarem-se mutuamente, passeantes
que flaneiam, cuscam,
incendiam olhares de
apetites, ou simplesmente
nada de especial
digno de ser
dito porque não
vai ter nenhuma
continuação.
As mesmas pessoas
não se cruzam duas vezes no mesmo
lugar em momentos diferentes, é um acontecimento que
não se repete,
a menos que
se dê o
fenómeno da sincronicidade, algo que não tem explicação
na razão humana. Assim sendo, quando ao fim do dia as pessoas regressam a casa,
esquecem tudo, fica a memória de um passeio agradável.
A.B. está habituado nos contactos profissionais
a lidar com
gente educada –
não são doutores
mas são amanuenses
dos doutores e
por imitação, imitam-se
de doutores - ele
é um balconista de
trato fino. Para os amigos do
bairro é um bacharel. Um homem de formalismos, um ritualista. A roupa
irrepreensível (só tem dois fatos completos, mas a madrinha oferece-lhe
nos anos e
no natal uma camisa
branca e um lencinho
na lapela, o que faz a diferença), a brilhantina a domar um cabelo rebelde
penteado com uma risca ao lado, perfeitamente traçada, as unhas limadas e envernizadas, mãos de dedos
esguios, a preenderem o cigarro em pose de actor romântico de Hollywood, que o
podia muito bem ser, se estivesse lá. Tem estilo para isso. Não há lembrança de
o A.B. se ter alguma vez apresentado em público, sem uma
gravata, o lenço e fazer contraponto, o sapato
a espelhar de
brilhante. Pelos sapatos se vê um
homem, tem essa ideia na cabeça mas não sabe como foi lá parar. Este estilo,
distinto e seguro
de si, dá-lhe ascendente e
posição no grupo e como é o mais
velho, é uma espécie de tutor, um líder.
Chama a si
a resolução dos
pequenos assuntos do
quotidiano, como comprar os bilhetes para a sessão de cinema e dar a
cara e o peito ao porteiro, entretendo-os,
- conhece-os todos - enquanto fecham os olhos aos mais novos que o
acompanham, e os deixam entrar, ainda não têm a idade legal, para ver aquele
filme, numa época em que os filmes não mostram nada que exija uma idade legal.
Quando esporadicamente, porque o dinheiro é escasso, frequentam
um local de diversão nocturna, vulgo
cabaré, ele vai sempre à
frente. Pede as bebidas para todos,
negoceia as propinas com as meninas, que todas na cidade o conhecem e gostam
dele. Bom rapaz o A.B., puro.
O ponto de encontro diário, quando termina o trabalho é na
leitaria do Alves, ao Alto de São João. É um bairro particular porque tem
habitantes vivos e habitantes mortos.
Tem mesmo o maior condomínio
púbico-privado (murado e tudo) para
os fenecidos com
ruas, avenidas, praças,
largos, edifícios de
porte e grandes
descampados cheios de
etiquetas metálicas com
códigos alfanuméricos. É a
toponímia deste local.
A vantagem para os moradores vivos é que a vizinhança é boa, pacífica, e
não faz barulho.
Todos trabalham desde miúdos, os amigos do A.B.e gostam do
bairro. Nas traseiras da
pastelaria há um
armazém das bebidas outros
produtos de restauração e o Alves colocou uma mesa de matraquilhos e uma
mesa de bilhar. Destes dois
jogos, talvez o mais popular
sejam os matrecos.
Este grupo de rapazes gozam
ali os últimos momentos
de liberdade antes de
serem convidados a
conhecer África, não
por opção pessoal, mas porque há uma guerra para
alimentar.
O Verão vai no início e promete ser eterno. Não se explicam do
prazer que dão, os dias abafados, quentes,
sem sussurros de
ventos, que espairam calor
noites adentro, em que as
pessoas e os
seres, distendidos, lentos,
languidescem num prazer
doce, quase misterioso, que se espera não
ter fim. O verão é
a estação do ano
em que se instala esta expectativa, e quando
termina, apesar do outono ter
os seus encantos
irresistíveis, as pessoas
ficam melancólicas, seguindo
nesse estado até o próximo ano, aguardando impacientemente a primavera esperançosa.
Num desses epílogos do dia, depois de umas cervejas bem bebidas
e de ter feito umas partidas
nessas duas modalidades
desportivas, A.B. convenceu
os amigos a
carregarem um piano
em segunda mão
que tinha acabado de
comprar numa loja
de objectos usados,
na Praça do
Chile. Vai realizar um dos
sonhos da sua vida,
com a ajuda
da Madrinha, queridíssima quase
mãe com quem
vive, e das
poupanças guardadas numa
caixa de sapatos
debaixo da cama,
depósito seguro que
não rende juros, mas tem a vantagem de estar sempre à mão. Marcou-se domingo, o
melhor dia da semana. Toda a
gente o acha e também Deus, uma das suas melhores invenções.
Aí vão eles: uma mão cheia
de animação e
vida, rua abaixo,
aproveitando a brisa
fresca da manhã,
o muro da
cidade dos mortos
à sua direita, as janelas da cidade
dos vivos, à esquerda. Salpicam-se ao despique em piadas à desgarrada , piscam
piropos às raparigas,debruçadas nas janelas, a verem a vida de fora passar-lhes
à sua frente. São poucas, que a
esta hora se
passeiam, agarradas por
algemas invisíveis a mães carrancudas, pitbulls, que protegem as
suas virginais flores, de
desabrocharem, se não
foram também elas, um
dia como as filhas!?
O passeio foi um ápice, até lá abaixo.
Na rua Morais
Soares as lojas
estavam fechadas, mas
as montras continuam a exibir em dias de descanso,
os produtos, agora
semi-ofuscados pelo papel celofane amarelado que faz uma espécie de
cortina protectora do
sol.
O vendedor do
piano, gasto como
os objectos usados
que vende, espera-os encostado à
porta da loja, cansado de não fazer nada. Anda há tempos, enfartado com a vida,
problemas seus, todos têm. O piano já se encontra estacionado na
rua pronto a ser transportado. A.B. inspeciona-o circunspectamente, acaricia-o sem que se
perceba. Tudo em ordem, paga com dinheiro vivo. O vendedor reconta
meticulosamente, com a ajuda de cuspo pessoalmente seu, as
notas, uma a
uma, até se
dar por satisfeito. Agora é a subir.
Os pianos são
máquinas de fazer
música de muita
sensibilidade. Os seus mecanismos internos são complicados e
pedem atenção constante, afinações,
manutenção. Transladar um piano
à mão – ao ombro
- pode não ser
uma boa ideia,
mas A.B. gastou
o dinheiro todo e
ficou sem disponibilidade financeira
para pagar um
transporte especializado;
nem para o afinador,
e prevendo-o ,também treinou afinação de pianos, pelo método
virtual, matéria essa tão esotérica, que nem vale a pena tentar descrever.
Chegados a este ponto, a pequena maralha está animada, a
moral no nível máximo. São jovens, têm uma energia
inesgotável. Tudo indica
que o transporte
se resolverá com
rapidez e eficácia.
Todos os cuidados
são poucos e
A.B. avisa os companheiros. Com
voz de comando e alguma organização, vai encaminhando o
seu rebanho, mas
isto é uma
tropa de ovelhas
rebeldes. A harmonia e
o equilíbrio são
fenómenos de curta
duração, a lei
da entropia puxa o
universo (até em coisas insignificantes como transportar pianos) para
o caos. O
problema do transporte, visto
sob a perspectiva dos transportadores está no peso do instrumento, no
calor que começa a apertar e na inclinação pronunciada da rua, factores que
conjugados neste dia, aumentam em muito a probabilidade de acontecer um
fenómeno extremo.
Começam por fazer pequenas
pausas, saciam o cansaço nas
torneiras públicas, qua as há,
várias, espalhadas pelo
caminho. A água
é um bem
universal e ainda se pode matar a sede gratuitamente nas fontes e
fontanários deste belo país, não seja por isso que se não avança mais e melhor.
Com o decorrer do
tempo, a subida cada vez mais pronunciada da rua, e
o aperto das
temperatura, a reposição
de líquidos obriga a
paragens mais prementes. A água já
não sacia, falta
algo mais encorpado, para repor os níveis de alento.
Entre fontanários – há quatro no trajecto da Praça do Chile ao
Largo do Alto de São João,
o piano é
agora estacionado,
entremeadamente, à porta de
estabelecimentos de restauração popular, ou seja, tabernas, dos galegos. Cheira
a vinho ácido a uma distância que vem desde a esquina anterior. Havendo nesta
rua quase tantas tabernas, como portas de entrada dos prédios, não será exagero
dizer que em toda a extensão deste percurso, cheira intensamente a vinho ácido.
Dentro emborcam-se arrotando, copos de três, encostados em
balcões com camadas de sujidade históricas. Joga-se à bisca, ao dominó,
encaralham-se asneiras umas atrás das outras. Os carregadores temporários de
pianos, para compensarem de
tanta água bebida, compensam
agora, optam por líquidos mais estimulantes, animam-se.
Quando finalmente chegam ao
destino, número 36, primeiro direito, bate a hora do
meiodia, e contam
testemunhas oculares, que não foi
fácil penetrar o instrumento pela
porta do edifício. O grupo teve dificuldade apesar de cálculos
matemáticos feitos de
cabeça, para definir a rota
ideal. As tentativas
foram muitas, e
por voltas da
décima – quase
a desistirem não fosse o A.B. ter
entrado na fase do vernáculo, a pontos de perder a
compostura habitual - a missão
teve sucesso e
o piano sem mossas assinaláveis tomou
posse por muitos
e longos anos
da sala de
estar da estimada
– uma santa – madrinha
do A.B., que
padecia de surdez
congénita, com a
graça de Nosso
Senhor, que sabe e bem gerir as boas conjugações e regular a providência
no mundo dos homens, que se ouvisse bem, a partir daquele dia acabava-se o
sossego, o merecido repouso.
O piano foi a alegria
do prédio, dos vivos e dos
mortos, fartos de silêncio, o que mais custa a um morto é não poder falar. Os transeuntes
irradiam felicidade quando passam na rua, deliciam-se, têm sonhos
fugazes, tudo por causa do som da música que escapa pelas janelas abertas, do
primeiro direito do número 36 do Alto
de São João. Música
que fluí pela
praça ajardinada. A passarada,
primeiro aturdida, desconfiada com a concorrência inesperada, amigou-se de
seguida dos músicos,
fazem agora coro,
empoleirados nas árvores, enquanto
cagam e quando
podem, em
cima de algum
desgraçado, que parece ser de
propósito.
Mudou-se o São Carlos para o
Alto de São João. Sopeiras húmidas
e senhoras enviuvadas,
todas cheias de
calores, não param em suspiros.
Arfam de quererem
saltar os peitos
dos decotes púdicos. Faltam
ares a algumas,
outras abanam estas com leques e dão-lhes a beber água com açucar. Logo se
animam. Palpitam agora as outras, as do leque. Andam nisto em círculos.
O Carlinhos, louro,
belo, franzino, que
se escapa quando
pode para as
emissões ao vivo da Emissora Nacional, e o pai a pensar que ele está de
massagista na equipa
de futebol, é convidado
habitual. Encostado ao
aparador da sala,
pratica nostalgias na voz.
Olhos azuis colados
ao tecto lavrado, como
que a louvar
a Deus. A.B. curvado sobre o piano,
martela carinhosamente as teclas brancas e pretas, afinal sabe tocar, e
bem.
Cai o feitiço a todos: sobre a
assistência feminina e os
amigos do A.B.
que se juntam
nesses saraus de
romantismo, prolongando-se
até ao lusco-fusco
dos domingos. Vivem-se
grandes momentos pessoais, iniciam-se
namoros, tecem-se ilusões de
futuro. E em calhando
oportuno, que não se pode
perder a oportunidade,
um ou outro
roçagar de chitas
e fazendas, apertos ocasionais, todos a quererem nessa
pureza e sentimento elevado, dar manifestação do seu prazer pela música e
felicidade de viver.
As teclas de
madeira dos pianos de verdade, soam
muito melhor que
as teclas de
cartão prensado. A.B. conseguiu à
custa da perseverança, tornar-se um
grande músico, pelo menos no seu
prédio onde não há mais pianos. Transformou o bairro dos viventes e dos
passados, numa festa permanente, o que se leva da vida.
** Credits: "Piano Men", by BUA
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