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DO JARDIM




A mulher do livro voltou a aparecer, não desiste esta mulher. Aqui, no jardim do costume, meio escondida por uma árvore, porque hoje faz muito calor e está a ler, dá a parecer, ávida, um livro. Para o ler dessa maneira, deve ser um excelente livro

Entretanto e numa justaposição sincronizada do tempo dela, com o da jardineira, mal paga (tem todo o aspecto de o ser) mas muito feliz pelo trabalho que tem, esta olha para ela com desconfiança. Não por estar a ler um livro, mas por se estar a esconder à sombra de uma das árvores mais banais do seu jardim (esta mulher jardineira tem um grande sentido de posse e chama as árvores pelos nomes, com um carinho assertivo. Não vindo elas até si porque não se locomovem, de alguma forma atendem ao chamamento do nome, emanam-lhe boas energias.

Passa um homem de fato com ar altivo e nariz com o mesmo qualificativo, atrapalhando as duas. Passou no entanto rapidamente saindo assim da vida delas. Os homens nestes preparos de roupagem e nariz empinado, passam sempre a grande velocidade, mas deixam uma impressão por vezes incómoda.

Baixa novamente a harmonia sobre o jardim abstracto que se situa no meio da cidade, uma qualquer.

Agora a jardineira põe-se a regar flores imaginárias nas costas da leitora, salpicando-a, e mais, aborrecendo-a muito com a sua atitude, porque sabe bem que não existem flores nas suas costas e a jardineira o que quer mesmo é chateá-la, agora que estava numa parte tão importante do seu livro, quase ao ponto de descobrir a trama fundamental, que anuncia o desfecho daqui a mais duzentas páginas de boa leitura.

Incomodada por essa atitude gratuita da jardineira, mas não lhe dizendo nada porque os bons leitores não são pessoas de atitudes rudes e menos delicadas – interiorizar - levanta-se e decide sair, do esconderijo e do jardim.

Volta para o trabalho. Falta-lhe pelo menos umas cinco horas na posição sentada numa secretária, que há anos que não tem nada de novo para lhe dizer e uma boa hora e meia de trasladações corporais nos transportes públicos, para poder voltar a fingir que é uma mulher livre, nas poucas horas na sua casa suburbana, à noite, no tempo solitário, quando se pergunta entre outras questões repetidas, por que foi esse o rumo que a sua vida tomou, quando as promessas iniciais eram animadoras.~


A jardineira, é absolutamente feliz, mas não lê livros.


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