Era um homem que o fazia, quem mais poderia ser? Os animais não
têm essa habilidade. Também não era um espírito, um fantasma, uma entidade
subtil, como se lhes possa chamar, se é que os há havendo, destes seres, que
não inventados, com alguma vida própria e individualizada. A existirem,
comunicam mente com mente, em ligação directa, capacidade a que chamam
telepatia. Mecânicas de ordem superior. Não precisam de rabiscar incongruências
nas paredes, penetram nos âmagos sem avisar e dá-se a comunicação.
Era pois, um homem, tinha que ser de ordem humana. Com isto
levantam-se questões. Que tipo de homem faz isto? Por puro exibicionismo? E
porque escreve assim? Se tem outros meios mais eficazes? Dita a verdade, nem se
sabe se isso é uma escrita. Não raras vezes procuramos lógicas consoladoras
onde não existe nada mais do que vazios, gatafunhos inexpressivos.
É certo que há muitas línguas e idiomas, centenas, algumas já
nem faladas. Há assim muitas formas de se dizerem amores e ódios, quase tantas
como os nomes de deus que se podem dizer em todas essas línguas não o esgotando.
Mas, uma língua universal, que as reúna numa só e permita dizer a soma de todas
as línguas, essa não a temos à disposição. Pode ser que exista e seja praticada
por um grupo fechado e especial de confrades, mas não se sabe, é matéria
especulativa.
Esse idioma universal em falta, anularia ao nível de os tornar
banais, muitos mal-entendidos, alguns irremediáveis. Se existisse, talvez os
homens se pudessem entender melhor. Até poderia ser uma língua gráfica:
prescindir dos sons, os miúdos preferem as imagens e o futuro é deles tanto
quanto ainda não chegaram a velhos. Depois escapa das mãos, mas não
vale a pena estar a dizer-lhes isso, que os poria nervosos pela vida
fora. Vivam na ilusão.
A ter sido inventada por alguém, um novo e muito promissor
esperanto, quem a inventou não a divulgaria borrando-a nas paredes dos prédios,
nos muros, nas superfícies desocupadas das paisagens urbanas. Há formas muito
mais polidas de o fazer.
Teria sido anunciada, por exemplo, na abertura dos telejornais e
nas notícias da radio, onde seriam convidados os melhores comentadores de
assuntos, os que sabem opinar adequadamente sem gaguejos sobre tudo, dando a
sua elevada opinião, não sem deixarem transparecer na humildade que a todos
caracteriza, que eles mesmos o poderiam já ter efeito – inventar essa língua- e
só não o fizeram pela humildade (repita-se esta palavra que o merece aqui ser
repetida) a que obriga o seu trabalho comunitário de comentadores televisivos,
e a ausência de tempo livre, que não têm, ocupado está a opinarem sobre tudo.
O homem que fez isso, a isso não era obrigado. Ninguém o
sindicou para mapear o novo velho mundo (se é que foi isso que quis fazer). Mas
fez, e as razões, são as que se ensaiam agora saber. Precisamos a bem da
coesão, da ordem pública e da democracia participativa, para tranquilizar as
pessoas.
Até que se esclareça o mistério e se esgotem os palpites e a
fertilização de ideias sobre o fenómeno, podemos já adiantar, neste privado
nosso, que é na realidade um homem, que o conhecemos, sabemos quem é, que já
nos foi apresentado numa circunstância que para este relato, não interessa
saber.
O autor, um homem do deserto, é a sua proveniência, que chegado
aqui não se imaginam as dores e os partos (fosse ele mulher), com a imensa
sorte de não ter ficado pelo caminho, e ter percorrido com sucesso (depende da
perspectiva como se vê),as centenas, ou mesmo milhar ou dois de quilómetros até
chegar são e salvo e todo inteiro, se isso for verdade, e como o pode ser, quando
se partiu e deixou ficar o coração no ponto de partida? Trouxe consigo as
lágrimas, um peso quase insustentável.
Caminhou dias e noites, até não conseguir somar com lucidez os
dias, sendo uma soma que nunca lhe interessou muito, já que defende a teoria
muito louvável, de que se não ligarmos ao tempo, pode ser que ele se esqueça de
nós.
Atravessou o mundo que teve de atravessar para encontrar o seu
paraíso, a ideia que fazia dele. Andava à sua procura, disseram-lhe que era
neste mundo onde agora veio dar, e ele, ingénuo acreditou. Era pelo menos essa
a presunção que tinha quando iniciou a viagem, não foi essa com que ficou quando
cortou a linha de meta.
Passados dois anos sobre esse dia, não mudou uma vírgula na
opinião que formou naquele primeiro dia, sonhando-o antes, o seu eldorado,
afinal um fictício infértil.
Sendo um homem do deserto, ele é um especialista em descobrir
pontos de referência em paisagens monótonas e aparentemente iguais. Tem de o
ser, os dos desertos, estando perdidos, não têm a quem pedir direcções certas.
No deserto não há alguém ao dobrar uma duna, a não ser muito esporadicamente um
alguém em movimento, com muita vontade de sair rapidamente desse cenário, sem
tempo para conversas prolongadas.
A não ser as conversas da noite, quando irradiam as estrelas piscantemente nos céus, quando os
berberes e outros aventureiros, esticados nos tapetes de puras lãs, tecidos por
mulheres anónimas nas aldeias longínquas das montanhas, bebem chã de menta e sonham silenciosos, ou falam
entre si sobre as coisas belas dos desertos.
Ele é efectivamente um especialista com carteira profissional
(uma força de expressão) nas pistas que os comuns dos homens não imaginam
sequer apanhar, quanto mais ver com os olhos.
A curiosidade deste relato, no que é original, está em que é
precisamente aqui, numa cidade corrente e banal, igual ou similar a tantas
outras, onde os cidadãos estão convencidos que a profusão de casas e monumentos
diferentes, sinaléticas várias, o movimento das viaturas e das pessoas deslocando-se,
tudo isso, lhes facilita o norte e mesmo que momentaneamente desnorteados,
basta
um qualquer transeunte para reportar de imediato o caminho certo para cada um.
Não é verdade, a poluição de tantas coisas juntas, confunde e assusta
os seres que aqui amarram âncoras, estrangeiros, dos sítios desérticos,
habituados à monotonia precisa do olhar.
No início, não foi o verbo. Não é do bíblico que se fala, mas de
como começou esta história. Alguém afirmou, que do nada, começaram a aparecer
uns sinais desenhados com várias cores, sinais concentrados no mesmo sítio, ao
largo da praça principal, até completarem o trajecto do seu perímetro. Não eram
gatafunhos, parecia tratar-se de uma sinalização. O autor, ou autores, usavam
mais do que uma cor e eram rigorosos nos traços. Execução cuidadosa, não podia
pois ser obra animal, usando aqui a possiblidade dos vários sentidos que se
podem compreender na palavra animal.
Era uma obra inteligente, feita com um propósito.
Diz-se que foi ao largo da praça, porque foram desenhados, ou
escritos, ou pintados, ou todos ao mesmo tempo, obedecendo a uma lógica, com
uma intenção. Pareciam indicar um trajecto, uma direcção, com informação
suplementar. O que começou a chamar a atenção foi o facto de serem “gatafunhos”
bem feitos e não chocarem com a harmonia da praça e dos seus edifícios. Via-se
que não tinham sido feitos com a vontade gratuita de poluir, de chamar a
atenção para uma causa, mesmo que idiota, para ofender ou chocar os
transeuntes.
Vendo-os com atenção, é possível encontrar-se um nexo, fazem
sentido. Daí adiantar-se que era mão de homem.
E era mesmo, era o nosso viajante dos desertos, o que procurou
primeiro nos sonhos e depois nos passos encadeados (mal adivinhava quantos
haveria de encadear para traçar o caminho certo) e doídos, numa peregrinação
sem motivo religioso, mas da maior das espiritualidades, a de encontrar o seu
paraíso, lugar de descanso, onde a palavra esperança de faz ao respeito é não é
uma alucinação provocada pelas sedes do deserto.
O autor anónimo, agora um famoso anónimo, tornou-se motivo das
actualidades noticiosas e de intensos e frenéticos debates e palpites nas
redes. Os meios de comunicação rasteira e os pasquins e revistecas de mexericos
andam doidos a ver se o descobrem. Plantam-se à porta dos serviços de caridade
que dão refeições aos pobres e sem-abrigo; foram a todas as repartições
públicas do fundo de desemprego; bateram à porta dos hospícios e das
misericórdias; perguntaram ao SEF. Nada, ninguém sabe nada, é um desconhecido
que calcorreia as ruas da cidade e ninguém sabe quem é.
O homem, desde o primeiro dia que chegou, por pura das mais
puras casualidades, sentou-se ao lado da porta principal do Banco da Nação, e
aí deixa decorrerem os dias, sentado, imóvel, na posição dita de lótus, com os
olhos semi-cerrados, sereno. Um chapéu invertido, pousado à sua frente, serve
como receptáculo das moedas.
Ninguém lhe reconhece o rosto, as feições o que seja seu de aspecto
físico. É um pedinte e ponto. São todos iguais.
Ele, por ter um ar resolvido e tranquilo, e também limpo e cuidado,
atrai as esmolas das pessoas que passam, dos estrangeiros, turistas
desorientados a quererem fotografar tudo o que mexe e está parado.
Os funcionários do banco, altos e baixos, entram todos os dias
de olhos postos no chão, num rompante porta adentro. Não dão nada a ninguém.
Tiram.
Sabemos então que pede. E porque sarapinta, grafita, as paredes
e as superfícies num código que parece uma língua nova?
Fâ-lo para se orientar, para cartografar os seus destinos, como mnemónica
dos pontos de referência, nesse seu novo mundo, de que é cidadão, sem
autorização para o ser.
Afinal o que parecia no princípio vir a ser uma história com
potencial, não é mais do que uma pequena notícia, uma nota de rodapé. Como enganam
as coisas.
Vamos reescrever, para que fique claro e se encerre este
assunto:
Um
refugiado da África sub-shariana ainda assim desértica e inóspita, recolhido
perto da ilha italiana de Lampedusa, em estado de avançada sub-nutrição, como
quase todos se apresentam, foi recolhido pelas forças marítimas e policiais portuguesas
a actuarem no mediterrâneo, ao abrigo de um acordo multilateral europeu de
cooperação.
Em visita
às forças, no local, o ministro da Administração Interna (não sem que antes
tenha telefonado ao primeiro ministro a saber se podia), autorizou o
acolhimento desde jovem homem com feições tranquilas. Anunciou-o nos jornais
televisivos, acompanhado, a seu lado e limpo, do homem, que não sabia ao que
estava.
Ao chegar a
Lisboa, depois de sair na
porta de saída do aeroporto, ficou por sua conta, e
não estando as televisões para o receber, também não havia mais necessidade de dispêndios
de tempo e energias e trabalhos, com este ser anónimo e desinteressante que nem
a nossa língua fala.
Os funcionários
foram à sua vida, e deixaram-lhe todas as opções em aberto. Fizesse bom uso do
senso e da razão e poderia chegar a ser um refugiado exemplar.
Não se sabe
se ainda está em Portugal, ou usou maldosamente a nossa hospitalidade para se
servir como plataforma de salto para um dos países ricos e fartos da europa do
norte.
Ou a Câmara toma definitivamente uma atitude forte relativamente
ao vandalismo provocado nas paredes dos edifícios, uma poluição visual
inaceitável, ou a cidade arrisca a perder fluxos turísticos. O presidente
constituiu uma comissão de análise, esperando-se para breve uma nota sua.
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