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MAPA MUNDI NO SECÚLO XXI

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No meu tempo, o tempo vivido que todos temos e reclamamos nosso, sonhava com paraísos longínquos, inóspitos ou não, todos a encaixarem na minha ideia de paraíso, salpicando de nomes magníficos e poéticos as cartografias que estudava, sonhando, em livros calhamaços grandes e pesados, nas bibliotecas públicas que frequentava humildemente, porque os livros sempre me puseram em sentido, de respeito e deslumbramento.
Entrava receoso, mostrava o meu cartão de utilizador esperando com essa identidade na fotografia do cartão, abrirem-se os portões do jardim das delícias.
Sentava-me num recanto que lembro bem por ser um ponto estratégico, quando fugazmente descansava os olhos das linhas de frases e dos desenhos dos livros, e podia desse ponto lugar quase invisível, ou talvez mesmo, olhar com pormenor para os detalhes dessa biblioteca de madeiras nobres torneadas nas esquinas e nos ângulos.
Tomava nota da paisagem não sempre a mesma, que observava da janela, diante mim, como sendo a minha companheira de mesa, através da qual via o mar, daí ser uma paisagem fluida e por isso nunca igual.
Estudava nos livros, ou absorvia para ser mais preciso, os grandes frios e os grandes calores; as humidades inconcebíveis das florestas dos trópicos; rios serpenteantes e rápidos indomesticáveis; escarpas, morros, maciços de pedra a pique rumo a vales profundos, ou então, o seu contrário, subindo a alturas montanhosas e inexploradas, por poucos ainda.
Nem sequer imaginava, imaginando com pormenores e tudo, a beleza fria e agressiva das ilhas faroe, no ponto limite de uma geografia habitável por homens. Ainda no capítulo das ilhas, das gélidas e atrozes, concebia a Islândia como o deserto gelado corrido a ventos vendavais, silenciosa de seres, mas ruidosa das forças da natureza. Os longínquos polos onde a vida é quase impossível de conceber, frio, frio.
No seu oposto canículas dos grandes desertos do mundo, mares de dunas, as ondas das areias imensas, a perder de vista, a vista, e os sentidos, tontos, sem norte, abafados à sua insignificância por um sol abrasador e inclemente. Desertos atravessados pelas rotas das sedas e das especiarias, camelos resilientes, homens iguais, mudos, ensimesmados, com um olhar flutuante numa linha do horizonte. Lá. Longe, onde está o oásis retemperador e as belas e dulcíssimas tâmaras e outras sensualidades.
Das florestas vem-me à memória, se não for uma recordação estapafúrdia e impossível de entender, os cheiros das humidades das floras exuberantes, os ruídos intensos, caóticos, sinfonias modernistas, da passarada e dos animais senhores e residentes dessas florestas ricas, em vida, o absoluto da vida, na diversidade das espécies, tantas, algumas não catalogadas ainda.
Há pouquíssimo tempo, o meu, havia lugares e sítios e amplitudes por descobrir. O mundo não era asfixiante e acanhado.
Tenho tantas memórias desse meu tempo, onde os rios corriam azuis para os mares e os peixes seguiam felizes, o destino, que era, fosse como fosse o que tinha se ser, mesmo que os peixes, sábios, não acreditem em fados.
O mundo tinha partes incertas, algumas de fama duvidosa, outras verdejantes e despegadas, e sabíamos dessas partes pelos testemunhos de alguém que ouviu contar a alguém que…
Não havia transportes directos para nenhuma parte, jactos rapidíssimos, teletransportes, viagens em maioneses digitais. Haveria transmigração de almas, mas isso sempre houve e haverá e não se explica.
Hoje que me lembro desse tempo, incomoda-me o facto de se ter perdido o mistério e a inquietação da aventura de uma viagem ao desconhecido, havendo gente, como eu, capaz de se endividar ligeiramente por uma boa descoberta, não tendo agora onde a descobrir.

Saio à rua e estou numa espécie hibrida de mundo global. Tudo à mão, tudo cenário, de tal forma que há mesmo dias, que Xangai está à porta de casa quando o que eu queria mesmo era viver Lisboa.


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* Créditos Fernando Vicente - Atlas

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