No meu tempo, o tempo vivido que todos temos e reclamamos nosso,
sonhava com paraísos longínquos, inóspitos ou não, todos a encaixarem na minha
ideia de paraíso, salpicando de nomes magníficos e poéticos as cartografias que
estudava, sonhando, em livros calhamaços grandes e pesados, nas bibliotecas
públicas que frequentava humildemente, porque os livros sempre me puseram em sentido,
de respeito e deslumbramento.
Entrava receoso, mostrava o meu cartão de utilizador esperando
com essa identidade na fotografia do cartão, abrirem-se os portões do jardim
das delícias.
Sentava-me num recanto que lembro bem por ser um ponto
estratégico, quando fugazmente descansava os olhos das linhas de frases e dos
desenhos dos livros, e podia desse ponto lugar quase invisível, ou talvez
mesmo, olhar com pormenor para os detalhes dessa biblioteca de madeiras nobres torneadas
nas esquinas e nos ângulos.
Tomava nota da paisagem não sempre a mesma, que observava da
janela, diante mim, como sendo a minha companheira de mesa, através da qual via
o mar, daí ser uma paisagem fluida e por isso nunca igual.
Estudava nos livros, ou absorvia para ser mais preciso, os grandes
frios e os grandes calores; as humidades inconcebíveis das florestas dos
trópicos; rios serpenteantes e rápidos indomesticáveis; escarpas, morros, maciços
de pedra a pique rumo a vales profundos, ou então, o seu contrário, subindo a
alturas montanhosas e inexploradas, por poucos ainda.
Nem sequer imaginava, imaginando com pormenores e tudo, a beleza
fria e agressiva das ilhas faroe, no ponto limite de uma geografia habitável
por homens. Ainda no capítulo das ilhas, das gélidas e atrozes, concebia a
Islândia como o deserto gelado corrido a ventos vendavais, silenciosa de seres,
mas ruidosa das forças da natureza. Os longínquos polos onde a vida é quase impossível
de conceber, frio, frio.
No seu oposto canículas dos grandes desertos do mundo, mares de
dunas, as ondas das areias imensas, a perder de vista, a vista, e os sentidos,
tontos, sem norte, abafados à sua insignificância por um sol abrasador e inclemente.
Desertos atravessados pelas rotas das sedas e das especiarias, camelos
resilientes, homens iguais, mudos, ensimesmados, com um olhar flutuante numa
linha do horizonte. Lá. Longe, onde está o oásis retemperador e as belas e
dulcíssimas tâmaras e outras sensualidades.
Das florestas vem-me à memória, se não for uma recordação
estapafúrdia e impossível de entender, os cheiros das humidades das floras
exuberantes, os ruídos intensos, caóticos, sinfonias modernistas, da passarada
e dos animais senhores e residentes dessas florestas ricas, em vida, o absoluto
da vida, na diversidade das espécies, tantas, algumas não catalogadas ainda.
Há pouquíssimo tempo, o meu, havia lugares e sítios e
amplitudes por descobrir. O mundo não era asfixiante e acanhado.
Tenho tantas memórias desse meu tempo, onde os rios corriam
azuis para os mares e os peixes seguiam felizes, o destino, que era, fosse como
fosse o que tinha se ser, mesmo que os peixes, sábios, não acreditem em fados.
O mundo tinha partes incertas, algumas de fama duvidosa, outras verdejantes
e despegadas, e sabíamos dessas partes pelos testemunhos de alguém que ouviu
contar a alguém que…
Não havia transportes directos para nenhuma parte, jactos
rapidíssimos, teletransportes, viagens em maioneses digitais. Haveria transmigração
de almas, mas isso sempre houve e haverá e não se explica.
Hoje que me lembro desse tempo, incomoda-me o facto de se ter
perdido o mistério e a inquietação da aventura de uma viagem ao desconhecido,
havendo gente, como eu, capaz de se endividar ligeiramente por uma boa
descoberta, não tendo agora onde a descobrir.
Saio à rua e estou numa espécie hibrida de mundo global. Tudo à
mão, tudo cenário, de tal forma que há mesmo dias, que Xangai está à porta de
casa quando o que eu queria mesmo era viver Lisboa.
* Créditos Fernando Vicente - Atlas
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