Ontem foi a véspera de hoje.
Eramos crianças e brincávamos, coisas datadas, de época, jogos
de rua, na rua, o espaço que marcava o centro do mundo, fosse numa aldeia
minúscula e remota de nome, fosse num bairro grande da cidade capital. Brincávamos
e eramos eternos, inesgotáveis, felizes, sendo pobres ou ricos, ou simplesmente
remediados, a maioria de nós.
Ontem as meninas não brincavam com os meninos, havia
diferenciação de género. Mas curiosidade, e tentativas. Não era pelo género,
era por ser assim. Ontem.
Gritávamos, fazíamos alaridos, nódoas negras, arranhões,
rasgávamos as calças.
Eramos felizes. Imortais. E as duas coisas, mesmo os meninos que
ficam somente à janela, atrás do vidro que nos separava, vendo o andamento do
mundo, nós, porque não podiam participar dele, decisões muito pouco sensatas
das mães ou sabe-se lá de quem não os
deixava ser meninos, na sua altura de ser.
Erámos cruéis com eles os mariquinhas e brincávamos, fazendo
galos na cabeça, bulhas, dizendo asneiras que algumas delas não sabíamos o
significado, mas tínhamos ouvido dizer. Repetição.
O tempo de um minuto media o mesmo de uma hora, um dia completo,
não havia relógios, o dia só terminava quando a noite entrava ao serviço.
Todos heróis, pequenos deuses, ubíquos e fazedores do milagre da
felicidade, sempre a pingar, muito mais vezes que a tristeza, por isso quando
crescemos, crescemos para menos sabedores e entediantes, queixinhas.
Eram os carrinhos de esferas, bicicletas artilhadas, o jogo do
“mata”, o elástico, a macaca. Intermináveis.
Catrapiscar os olhares ou ficar com eles em ”bico”, primeiras
tentativas de sucesso. Sucesso de quê? Uma correspondência, que fátua,
efemeríssima, quase da velocidade da luz.
Um roçar ínfimo de dois sorrisos quase cúmplices que se cruzam,
mais do que suficiente para uma palpitação diferente. Prazer. Bom prazer, sem
consequências, por isso, puro.
Ontem, foi hoje mas ontem, e não queríamos, queríamos que
continuasse a ser hoje.
Amanhã todos têm medo, depois gosta-se. Ou não se chega lá.
É uma mentira muito mal contada que se volta de novo a criança.
Só na memória, o único espaço interestelar onde não existe o tempo, dando esse
vácuo a oportunidade de qualquer um voltar a ontem.
Por ter essa funcionalidade, não se conhece ninguém, no seu juízo,
que não goste das memórias, o buraco negro – ou claro – de liberdade de acção
ou observação de fotogramas antigos, em estado de pleno controlo sobre a
situação.
Brincávamos e ainda nos lembramos dos nomes, alguns já os
perdemos, mas lá está, estão na memória, vivinhos e enxutos da “silva”, um
dizer que se usa agora com a maior das propriedades e encaixe perfeito.
Também se tocavam campainhas de portas, brincadeira mais do que
salutar e é por agora já não se tocarem, que o mundo está como está, e ontem,
por mais que se queira encontrar o argumento certo, já não se pode puxar para
hoje, impossibilidade que assusta bastante.
Tudo isto para dizer, que hoje ainda se brinca e sendo uma
actividade muito saudável e ininterrupta, apesar do jogo do elástico já não
estar no topo das preferências, ou as caricas, dá a esperança aos de ontem que
os de hoje, passem esse prazer aos de amanhã.
Não é isto a eternidade em continuo?
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