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O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - O DIA








Quando um homem se deita
com muita coisa por pensar, acrescenta novos pensamentos aos que estão em carteira, chega a atafulhar-se, escasseando tempo para os pensar a todos, devidamente. Tertuliano esgotou as horas da sua primeira noite no bairro à margem da cidade, fazendo a contabilidade dos pensamentos, pondo uns na folha do deve, outros na do haver, os antigos, os novos, outros em trânsitos contabilísticos, tudo isto feito rigorosamente, porque nas folhas dos guarda-livros, faltar um tostão ou mil reis é de igual gravidade. Tertuliano é um homem meticuloso, não é picuinhas, é arrumado de cabeça e propósitos. Esse prestar de contas, chame-se assim, porque Tertuliano despediu-se do papel que lhe deram para representar e escolheu um novo. Ninguém nas altas esferas celestes estava a contar com isso. Veio com a missão de ser pastor de rebanhos, agora quer ser marinheiro. Uma decisão pessoal desse calibre, em rebeldia, deixa poeiras que devem ser varridas. Foi o que fez nessa noite mal dormida.

Com o nascer do dia, as contas feitas, renovado de energia porque estava de bem consigo, solteiro e disponível para começar uma nova vida, mandatado pelo poder imenso da motivação dos novos inícios, dirigiu-se ao rio.

Não se deteve nos pormenores da higiene. No chalet do Jacques, o francês mais português que existe, águas nem correntes nem sem o serem, nem casa de banho. Não havendo água não há banho nem necessidade de um quarto que tenha esse nome, é inútil, sem serventia. Deu-se ele ainda assim um toque especial: experimentou a brilhantina do Jacques. Sentiu-se luzido, um lambidinho. Estava despachado. Mata-bicho de lorde posto em mesa com toalha de renda, teria sido agradável, mas isso é uma alucinação narrativa, não havia.

Sai para o que se poderia chamar uma cloaca em céu aberto e não se pode dizer que cheirasse a primavera, ou a outono, a flores, à frescura do tempo, a uma brisa rejuvenescedora. Cheirava simplesmente a merda.

Pôs-se ao caminho, com passada enérgica de um jovem habituado a andanças, pela calçada do Duque de Lafões abaixo. Vai ansioso para se encontrar de novo com o rio-mar.

Sai para a rua no prenúncio da madrugada, quando ainda paira sobre os telhados a luz indefinida, o claro-escuro, no ante-momento em que tudo é possível vir a acontecer no dia que desperta. Do bairro ao rio são quinze minutos embalados pelo plano inclinado. Para quem está habituado a comer montanhas com os pés, é como estar parado. No caminho não se cruzou com ninguém.

O rio, não estando à espera dele, desperta e espreguiça-se sem pressa de ir a lado nenhum, a sua natureza é ir, não faz sentido ele colocar-se questões. Para além do baloiçar ritmado dos barcos, das gaivotas meio adormecidas, das varinas chegando-se com vagar ao cais - as canastras de vime à cabeça - para carregarem o peixe dos barcos, dos varinos, dos avieiros e desses nomes todos que eles têm, não há mais ninguém sem ocupação previamente definida no alinhamento naquele cenário, senão o Tertuliano, que está sentado no bordo de um cais mais ou menos cais. A olhar, amorosamente, para a água.

Nas tonalidades do rio e do céu, nas sombras e nos reflexos que se projectam no espelho de água, a sua cabeça fértil, sonhadora, vê naqueles barcos toscamente acabados, com nomes pintados nas proas pouco comuns para nomes de barcos,  naves siderais a aguardar autorização de estacionamento. Um engarrafamento de viaturas vindas das outras galáxias; os sons e ruídos indefinidos que lhe chegam aos ouvidos,  são emitidos por seres diferentes que falam línguas alienígenas; viajantes do espaço, um ajuntamento, uma azáfama , uns com boinas galegas, outros com barretes ribatejanos, mas alienígenas na mesma, acotovelam-se à saída das naves dirigindo-se apressadamente para o cais, porto de abrigo das viagens celestiais, feitas à estonteante velocidade da luz, que envelhece num repente uns e deposita outros na cansativa eternidade da juventude.

Muletas, bateiras, enviadas, faluas, catraios, fragatas, barcos de água acima, barcos dos moinhos, barcos dos moios, canoas, botes, aveiros, varinos. São os nomes das naves flutuantes da vida láctea, o mar da palha.

Os marujos das doces águas iniciam as lidas do dia. Postas as gentes no frenesim da manhã, Tertuliano volta à realidade, aproxima-se de um homem alto, seco, telúrico, que da proa do varino, comanda os movimentos de descarga. O barco está ligado ao cais por uma longa e instável prancha de madeira por onde os arrais empurram pesadas barricas, num equilíbrio precário. Em fila, juntas de bois desprendidos e muito bois no carácter que emanam daquela forma indiferente, ruminante, de estarem ali, como poderiam estar na lua, aguardam pela trasfega, indiferentes ao ambiente e a tudo.

Tertuliano tira a boina da cabeça e amarfanha-a nas mãos, sinal de temente, a Deus e aos homens mais velhos, e ganha alento para dizer qualquer coisa.

- Bons dias Senhor- vence a timidez.

Se foi pela mistura confusa dos ruídos exteriores, se pelo tom de voz baixo com que foi proferido o cumprimento, ou simplesmente porque ao outro não lhe apeteceu responder, a cena terminou muda. Ficou mais nervoso, com a certeza interior que desta vez iria gaguejar ainda mais.

Insistiu.

E o magro e alto e imóvel, a disfarçar que não ouve, cuspe em arco para a água e conta os círculos concêntricos que se vão afastando da zona do impacto. Uma mania sua, de entreter tempos mortos: cuspir para o ar, ou para a água, é de tal forma o vício que até cospe em seco.

A insistência saiu mais audível, era inevitável uma resposta, a menos que se criasse ali uma situação estranha, um impasse:

- Bom dia? Só ser for para ti labrego. De arrelias com estes inúteis trago-as desde que sai de Vila Franca, e quando saí nem lhes via a tromba, estás a ver a que hora da noite não seria, para ser escuro como a fuligem.

- Estás com esse ar de menino de hóstia, lambidinho, acabado de abrir a pestana e estes cabrestos a encherem-me o depósito da paciência há horas. Cambada de bêbados inúteis. Enjeitados é o que eles são!

(Tertuliano achou uma coincidência o homem ter-lhe chamado lambidinho, quando ao sair do projecto de casa do primo, tinha pensado o mesmo da sua aparência, após a massagem de brilhantina. Há emparelhamentos assim).

-Desculpe Senhor eu só queria fazer uma pergunta.

- Se querias, já devia ter saltado cá para fora, que eu namoros é com gajas e mesmo assim não lhes dou muitas confianças, não tenho dinheiro para isso.

- Será que me podia dar trabalho no seu barco?

-Barco? Onde é que estás a ver um barco? Isto não é um barco, é um Varino, o príncipe deste rio grandíssimo, que podia ser um mar, e é, que o tratamos como tal.

-Desculpe não sabia o nome. Não sabia que os barcos tinham nomes.

-Então se não tivesse um nome, como é que o chamavas? Apontavas com o dedo? Assobiavas, como aos cães? Todas as coisas têm um nome, e se não souberes os nomes das coisas, é como se elas não existissem. Só existe o que tem nome. O resto é órfão.

-Os barcos são como as mulheres e as mães delas e os filhos que parem, que somos tu e eu e estes cabrões que me serrazinam os cornos todo o santo dia. Conheces alguma ou algum que não tenha nome?

- Não senhor, penso que há um nome para tudo.

-Lambidinho com esse paleio todo ainda vais a doutor.

- Mal falei senhor.

- Mas já foi demais, agora podes coser a corneta, que já fizeste a música para um dia completo, até para a semana inteira.

- Sim senhor.

- Salta cá para dentro para ajudar estes inúteis a descarregar, pode ser que ganhes janta. Estás contratado por um dia.

- Obrigado senhor, eu quero conhecer o Mar.

- Pois ficas desde já apresentado, mas o que eu preciso agora é de braços fortes. Quanto à poesia deixa-a para quando te enfrascares e te puxar ao sentimento, enquanto vomitas e te mijas todo num beco qualquer, depois de teres sido roubado por uma puta que te emprestou um esquentamento, por teres metido o bico onde não eras chamado.

- E já agora fica-te com esta: o mar não se dá a conhecimentos íntimos.

-Eu tenho braços fortes e não sei o que são poetas.

 -Tens é uma lábia que me cansa o discernimento.

- Os outros são burros que nem paralelepípedos, este faz versos. Tocam-me sempre os deficientes.

- Quero aprender senhor, e pode contar comigo que não sou homem de canseiras.

- Vá, dá uma mão ao Albano e ao Nabo que estão à rasca com o peso das barricas. Bebem que nem umas pipas e depois, feita a trânsfuga de líquidos de um lado para o outro – eles cheios e elas vazias – foi-se-lhes a força para as empurrar. Para deixar o sequeiro passar pela goela, estão sempre prontos.

-Ficas à experiência e se fores trabalhador, tens trabalho, comida, vives aqui no barco e cuidas dele como se fosse a tua mãe entrevadinha. Ouviste? Como um filho exemplar.

- Sim Senhor. Assim farei.

-Aos Domingos folgas e se te apanhar a cuspir alexandrinos para os peixinhos e para a lua, atiro-te ao mar e acabou-se a sopa. A das letras e a que te enche o bandulho.

-Obrigado Senhor, eu sou homem de poucas conversas. E não sei falar com os peixes.

-Vamos ver. Rematou o arrais, alquebrado da dialética.

Este foi o dia em que Tertuliano começou a ser feliz.



A fotografia que ilustra este texto foi gentilmente "emprestada" por Helena Batista, uma Artista enorme na sua profissão e também na sua amantíssima paixão pela fotografia 





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