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O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - A CHEGADA




O dia que interessa, pode ser um Domingo.

Um homem, humilde e pouco mais do que vestido com roupagem coçada, apeia-se na estação de comboios de Braço de Prata, na zona oriental da cidade.

O povo está impedido de desembarcar na Estação Central, do Rossio, obra de arquitetura neogótica, uma maravilha aos olhos dos estrangeiros que por cá passam em negócio, visita ou espionagem. A burguesia de Coimbra, do Porto e locais mais esquecidos ainda, em visita, quando olham para ela, também gostam.

Em rigor deve dizer-se que a fachada do edifico é em estilo neomanuelino e que sua estrutura metálica interior é que é neogótica. Construído em vários patamares, vindo o primeiro a abrir-se para a confluência do Largo do Rossio e os Restauradores, conta com uma ligação ao Hotel Palace, o hotel mais luxuoso da cidade. No interior da estação há habitações para os funcionários e uma ampla sala de espera, feita de propósito para suas Majestades reais repousarem antes de tomarem entediados o comboio para algures. Já não há majestades reais, há república. No piso superior ficam as plataformas ferroviárias.

Na praça do Rossio, nem por isso majestática, o umbigo da Nação,  circulam burgueses e outras aristocracias. Dos pobres, circulantes, só os necessários para satisfazer a procura: engraxadores, ardinas, cauteleiros, moços de fretes, aguadeiros (que vinham de Caneças com as bilhas de barro vender água fresca, dizendo as más línguas, que as enchiam  num fontanário público de água banal corrente, nas portas de Odivelas),  prostitutas armadas em senhoras, varinas malcriadas e cuspirem asneiras constantemente, e a cota permitida, como  em todas as cidades, de amigos da “carteira”, que pickpocket era uma palavra desconhecida na época.

Outros párias quando identificados, são corridos à cachaporra por polícias com barrigas proeminentes,  bigodes fartos e retorcidos, que se arrastam pelas ruas da Baixa a pedirem que o dia termine.

A Praça fervilha de cafés, escritórios, consultórios médicos, chapelarias, a famosa Ginginha, com ou sem elas. No meio da Praça há duas fontes, e a estátua de D.Pedro IV , hirto, a agarrar com uma mão o foral da independência do Brasil. Existe um urinol público para homens. Mulheres não urinam fora de casa.

O movimento dos eléctricos, dos carros, das pessoas de andar atarefado, para todas as direcções e para nenhuma, é ininterrupto: cenário do espaço urbano.

O homem humilde, assustado, acaba de sair na estação anterior, a porta dos fundos, sem mais aparatos senão o anonimato. Só visitará o Rossio mais tarde. Vem do campo como o outro Senhor - esse importante - e está tecnicamente descalço: as alpercatas não contam como sapato,  quase lá, mas ainda assim não entram na categoria de calçado.

O outro Senhor, que dita e vive no palácio, sofre dos pés. Por essa razão, mais do que suficiente, anda pouco, resume-se a esta em casa – acredita no que as afilhadas e os acólitos lhe contam, os seus olhos - não vê o mundo, nem mesmo o que está logo do outro lado da rua. Governante de um país com fronteiras longínquas pouco mais viajou do que atravessar uma ponte, para a outra margem, no dia da sua inauguração.
O que vem este homem coçado fazer à cidade? Pelo jeito amesquinhado como olha para o tráfego, parece que deu de caras com belzebu? Será susto, ou espanto.

O que o levou a sair do sítio onde pendurava a boina, e desaguar numa imensidão de ruas com nome, onde os pés não sentem a terra que pisam porque separa-os um tapete de macadame ou um passeio atapetado por pedras brancas?
Porque razão o poiso da boina é sempre num cabide temporário?

E porque vem ele expor o corpo a dissabores desconhecidos, a tempestades, tormentos de alma?

O segredo deste mistério é que ele vive inquietado por um sonho persistente que se alojou à saída do canal por onde saem os pensamentos.

Quer ver e decifrar o mar.

 Como é, no ver, o que se sente ao tocar, molhar as mãos, os pés, que cheiros tem. Ele quer conhecer todas as categorias fenomenológicas e empíricas que são mar. A que se parece a água toda junta? Onde nasce, onde termina?

 Nas terras da sua terra, encaminhador de ovelhas, prostrava-se em distração, imaginando ondas nos perfis dos montes, umas suaves, outras tumultuosas, ao sabor das morfologias dos terrenos e dos efeitos do vento nos campos de centeio. Quem o visse, nem ao longe nem ao perto, atribuiria algum sinal de comportamento estranho e deslocado: os pastores são gente ensimesmada.

Um dia, sem explicações, que é assim que se tomam decisões sensatas, pegou no objecto que tinha mais a jeito – o corpo - e pôs-se a caminho. Fez os balanços que havia a fazer com os horizontes da sua aldeia e tirou-a da cabeça para sempre.

A vida realiza-se peregrinando, descobriria mais tarde, mas no dia em que  partiu não teve pensamentos eloquentes.

 O comboio é um meio de transporte simpático. Não obriga a pressas, chega quando tem de chegar, dá tempo a fumar tranquilamente um cigarro enquanto a paisagem se esfiapa languidamente. É por isso que cá está a desaparecer, já ninguém gosta de ver uma paisagem esfiapar-se languidamente, só nos livros.

Saiu de casa nas horas de luzes difusas, quando o orvalho cobre as ervas e as plantas dos campos, e chegou quando a ampulheta entendeu, ajudada obviamente pelo competente maquinista dos caminhos de ferro.

Tertuliano das Neves, ao pôr os pés no lajedo frio da plataforma, subiu-lhe pela espinha a azáfama da estação de comboios, os sons histriónicos dos miúdos - desalmados miúdos sempre aos pinotes - a rabearem os passageiros; os incitamentos das vendedeiras mendigando vendas, os ruídos secos das cargas e descargas dos embrulhos atirados para o chão, as malas, desacompanhadas amontoadas na plataforma, esperando reclamação de pertença.

Ficou zonzo.

Foi por onde os outros passageiros foram, atravessou um átrio pequeno (é uma estação suburbana) forrado de azulejos azuis antigos e bonitos; deu-se conta do chapéu e do bigode de pontas reviradas do funcionário dos bilhetes, que despontavam de uma portinhola aberta onde atendia uma fila de pessoas; encostados às paredes, bancos de madeira corridos onde pessoas sentadas e caladas, se entretinham com coisas suas, da sua vida,  matavam a espera.

Na rua, a velocidade  dos carros e a confusão de tanta carroça junta, deixam-no  desprotegido. É movimento a mais. Até ontem duas pessoas juntas eram uma multidão: ele acompanhado da sua sombra. Na vida de pastor os animais são quase objectos que se mexem, e pessoas não se veem todos os dias  passeando por vales e montes.

Tertuliano, não é um nome comum (nem se considera provável que quem lhe deu nome fosse dado a curiosidades sobre a cultura greco-romana). O orignal, foi carimbado no registo civil  da época, com o nome de Quintus Septimius Florens Tertullianus, nasceu em Cartago na província romana de África, e já vai morto para mais de muitos anos. Ficou conhecido por ter sido o primeiro autor cristão a produzir uma obra literária em latim.

É um mistério insondável a razão de lhe terem dado o nome (ao nosso Tertuliano) de um exegeta, em todo o caso o nosso, vai levar a carcaça que o acompanha até à morte, sem saber o que é um exegeta, nem que tenha existido gente dessa espécie, e ainda bem, que é menos uma preocupação. Dará bom uso ao seu nome que lhe coube, porque é um homem decente.

Quando saiu da estação e já interiorizadas as primeiras impressões e o choque de civilizações que acabou de viver, tirou do bolso da jaqueta desbotada, um papel pardo escrito com lápis. Continha a morada de um primo afastado imigrado há um par de anos, e que lhe deixou convite, na noite em que se despediram na venda do Abílio, o da taberna da aldeia. Se um dia quisesse pôr à prova a sua sorte na cidade, viesse ter com ele. Está acabado de chegar.

Como se verá o poiso é humilde, mas onde cabe um cabem dois e mata a fome para as primeiras impressões, que do milagre das rosas transformado em carcaça, tem o povo licenciatura em escola de cozinha de pouco condimento, cozinha de autor.


Rendilhados os caminhos da mente.

Um homem sonha emaranha-se em enredos, constrói cenários, monta peças, põe actores no palco, ensaia, faz as suas estreias. Inexistências, irrealidade na realidade. Um sonho é um magma falacioso, não existe fora de portas. Como se sonha um Mar que nunca se viu?

Sabe-se o que é a água, presume-se que o Mar é o encontro de muitas águas vindas de todas as partes, juntando-se num lugar qualquer, ganhando um tamanho enorme. E com essas presunções - exercícios intelectuais -  a que ideia de mar se chega? Só vendo.

Os sonhos não adivinham o marulhar das águas, os cheiros, a sua paleta de cores, as sensações na pele do salpicar salgado da espuma de uma onda que se despede do mar na orla arenosa de uma praia deserta.

Como é o verdadeiro Mar quando se vê pela primeira vez?
Esbugalhamos os olhos no espanto, ou é mais belo o mar dos nossos sonhos?

Cascata de perguntas, que não param de jorrar, atontam  Tertuliano,  já de si dado a arvoamentos da mente. É a segunda vez no mesmo dia que os tem.

As quatro horas da tarde daquele domingo, ficam no relatório da sua vida como o momento em que ele se apresentou pela primeira vez ao mar.

Tecnicamente não é um verdadeiro mar, é um rio grande que vem de longe. Nas redondezas do seu encontro final com o mar, ainda se espreguiça languidamente formando uma enorme bacia, conhecida por Mar da Palha, porque em dias de sol intenso quando o vento não tuge nem muje, as suas águas quedas espelham os dourados do astro rei, e fazem lembrar uma seara depois da colheita. Dizem que nos tempos  passados, pós de ouro verdadeiro brilhavam nos rebordos dos seus areais, agora está somente poluído.

No cais centenas senão mesmo milhares de pessoas, amontoam-se, encostam-se, furam, farejam um buraco, na fila da frente, para assistirem de plateia a chegada do avião que vem da américa.

Tertuliano nem se apercebe da multidão, apesar de nunca ter visto tanta gente e que tanta existia. Está especado, estático, frente a este  mar, o verdadeiro, o real. Abandonou a ideia feita do sonho, este que agora vê é mil vezes melhor do que o imaginado.

Mas as certezas dos homens, dependem do sítio onde se encontram. Na sua terra de interiores, via nos montes e nos vales as ondas e suas depressões, de um ajuntamento de água inexistente, os Tertulianos daqui, imaginam na água os montes que nunca viram. A cada um os seus deslumbramentos.

 “O mar não tem fim, está em perpétuo movimento, toca-se, mas não se agarra, e coisa que não se agarra nunca será nossa.”
Soliloqua ele neste momento.

“No entanto, se não pode ser meu eu posso, pelo menos conquistá-lo.”
Vêm-lhe esta possibilidade à cabeça.

“Como é que se conquista uma coisa que nunca está parada e escapa-nos teimosamente das mãos?”
“Boa pergunta. Não sei!”
Conversa concluída.

Esta conversa interior é como um entretenimento temporário, Tertuliano e a maralha que se juntou, estão para ver chegar o voo da Pan American. O hidroavião vai amarar dentro de instantes no mar da Palha.

Tanta emoção, tanta novidade num só dia. A vida é assim, parece estar parada tempos sem fim, e de repente, dá um salto no abismo, desfia uma catadupa de acontecimentos novos, fenómenos e epifenómenos, e depois de toda essa turbulência, volta a acalmar.

Tertuliano está fascinado.

O clipper está mesmo mesmo a chegar, já se vê, lá ao longe. É aquele pequeníssimo ponto negro…

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