Um bairro de lata não tem planos de
ordenamento camarários. É um não-sítio. Terra pária. Não tem ruas direitas projectadas
a esquadria num gabinete; a luz é a do petróleo e nos casos mais extremos, a do coto de vela; a água, a que se bebe nas
fontes; o esgoto é a céu aberto, projectam-se lixos pelas aberturas das janelas
quase janelas, pelas portas quase portas, quase, porque para o serem completas,
faltam as molduras de madeira, os vidros, uma fechadura e a chave das portas.
No
bairro da lata cada morador é o seu próprio arquitecto, um construtor civil. Mas
também há entreajuda. Os pobres dão aos outros pobres o que lhes falta, dão.
O
bairro chinês está na periferia da cidade, oriental, igual a outros, sem
predicados, só defeitos.
Não
havendo igreja edificada, uma taberna assinala o epicentro. Apresenta-se no
ponto exactamente topográfico de intersecção das principais vias do bairro. Sinuosas
e tortas, por sinal. Não há topógrafo nem agrimensor neste bairro, pelo que as
ruas e os seus moradores, apreciam ser sinuosas e eles igualmente são.
A
taberna, não sendo como já se viu um monumento, apresenta as suas fragilidades,
mas não se deixa abater por isso. Estacas de madeira toscas e de desconfiar, tentam
credibilizar-se como estrutura credível onde assenta um telhado feito de canas
e materiais de estabilidade consideravelmente duvidosa. Delimita a área do
estabelecimento, uma meia parede em alvenaria, pela cintura dos utentes. A
partir daí é a amplitude de vistas, o seu aberto, no melhor ou pior, tendo em
conta as perspectivas individuais.
A
taberna, eixo do bairro do chinês, é propriedade de um galego. Os galegos são
portugueses com o sotaque original. Sendo dos primeiros portugueses deveriam
ser mais considerados, mas não, nem são considerados portugueses.
Esta
taberna tem mesas mancas, desiguais, de tábuas corridas com manchas perenes de
vinho, que nunca serão limpas. Manchas dos rebordos dos copos de barro, que nunca
foram lavados no intervalo de mudarem de boca. Pousam nessas mesas titubeantes,
cotovelos sujos. Pousam os desânimos, apatias, vidas gastas, desperdiçadas,
consumidas até ao último sopro. A bebedeira permanente dos homens que ali
estão, abate as tristezas, afoga em esquecimento as desilusões. Só mijam mais e
rezingam mais, fora isso continuam a ser uns descartáveis inúteis.
Homens jogam à bisca lambida, insultando-se.
Dizem brejeirices que eles próprios, não fosse o álcool, se envergonhariam de
terem dito.
O
primo do homónimo do cartaginês é um homem vistoso: cabelo forte e farto e
negro, acachapado com detalhe na risca irrepreensível, e a ajuda da
brilhantina, com a supervisão geral de um pente sempre a entrar ao serviço. A
camisa está coçada, malidecência, no colarinho e punhos. Está desfraldada.
O nome conduz a equívocos, mas o Manuel
Jacques é tão português como qualquer um com certidão de nascimento passada em
Conservatória nacional.
O
seu nome afrancesado tem uma explicação e origem desconhecidas. Pode, sendo o
“pode” uma suposição leviana, ser o resultado bem sucedido de um espermatozoide
recôndito, que se infiltrou com êxito num útero pátrio nos tempos das invasões
francesas. Foi com certeza isso.
O
Jacques, primo de Tertuliano de quem se está a falar, não fala francês, e o seu
português apesar de solto, não é dos melhores.
Carrega
e descarrega pipas e garrafões nas tabernas e mercearias. Nas horas livres joga
às cartas. Se é do cheiro que se escapa –
a rolha por muito que queira não veda tudo - ou de passar os dias a
lubrificar os lábios de um padecimento, de uma secura crónica, no final da
jorna experimenta dificuldades em manter um rumo alinhado, o que tem reflexos
menos promissores na sua vida em geral.
É
um bom homem com maus vinhos, violento mesmo, mas é amigo do seu amigo. Cruel no
trato com as mulheres, poalhas de abandono materno.
Não
junta letras nem números, nem identifica as suas grafias, mas vê mais longe que
a distância do nariz, o que leva um homem à desgraça, ou ao sucesso, dependendo
de circunstâncias existenciais, das conjugações dos astros ou do alvedrio.
No
seu caso teve uma vida sem mais relevância do que a de ter sido o companheiro
da Zarolha e um tio adorado pelas crianças – o que não é coisa pouca! Quando estava com elas, perdia as composturas
de adulto, vestia-se de ingenuidades, e transfigurava-se numa criança com um
corpo descomunal, bigode à monárquico e voz roufenha, não francesa.
O
trabalho na Sociedade vinícola durou pouco mais de um ano, tempo suficiente
para tratar a cidade por “tu”. Transferiu-se das pipas para as botijas de gás
da CRGE (Companhias Reunidas de Gás e
Electricidade), um produto tecnológico inovador sem cheiros tóxicos e aí
cumpriu a sua irrelevante carreira, até terminar como vendedor comissionado dos
produtos Ach Brito.
O
novo emprego revelou-lhe, com gosto, que as ruas também se atravessam a
direito, sem os incómodos das curvas e dos balanços claudicantes, provando-se a
falsa desconfiança, de que o problema não estava no homem mas nos produtos que
carregava às costas, bastando a simples mudança do transporte de substâncias
líquidas para o transporte de matérias gasosas, e o fenómeno do troca o passo
ficar resolvido e curado.
Quando o Tertuliano aparece em cena o primo
bate a bisca de trunfos – paus - na
mesa, e mata o jogo.
O não afrancesado, olhando presumido e
triunfante para a audiência:
-
Olha quem vem lá! O primo da pacóvia, acabadinho de chegar à cidade. Bem-vindo
ao mundo e a esta cidade que te acolhe de braços abertos-. Disse o Jacques, já
com o olho nas cartas do parceiro, antecipando mentalmente a primeira decisão
do jogo seguinte – a ele não o enganam.
-
Aqui estou Manel, resolvi vir.
-E
vieste no dia certo, que hoje é dia de festa.
-Manolo
sai um cuepo bem aviado, que ofereces
tu. O rapaz vem com a garganta seca de tanta viagem, até está pálido. Acabas de
ganhar um novo cliente e olha, pensa melhor, oferece-me também um a mim que fui
eu que to apresentei.
Por
detrás do balcão o Jacques foi agraciado com a sinalética gestual do dedo do
meio.
-
Este corno deste galego está aqui há mais de vinte anos e se não pedirmos as
coisas em espanhol, ainda tem dificuldade em entender o português. Ainda dizem
que falamos a mesma língua!
-Enquanto
em dou cabo aqui destes otários que nem sabem o valor das cartas, bebes o copo
e vais pôr a sacola no meu palácio, que de seguida temos teatro.
-Teatro,
primo? Nunca vi um teatro?
- Pois não e este é ao vivo: é o avião que vem
da América.
-Vamos
vê-lo a pousar no cais de Cabo Ruivo. As madamas
e os camones a sairem das suas
entranhas. Parece que uma baleia abriu a boca para os deixar passar, todos
lampões. Desfilam pelo pontão que até me alembra
um filme que vi no animatógrafo.
Os
parceiros das cartas pousam o jogo, gostam de ouvir o Jacques contar as suas
coisas, conta bem.
-
Fiquem vocês sabendo, que não duro sempre, ignorantes de merda, que na América,
há uma cidade onde são feitos os filmes, e onde a malta que lá vive, os actores
e os outros gajos menos importantes, andam sempre em festa. Aquilo é que é
viver: todo o dia de um lado para o outro a pisar tapetes vermelhos, para cá e
para lá, com um copo na mão e sempre a rir, todo o tempo nisto. Quem o diz é o
marreco que está por trás do pano branco, lá no animatógrafo, a fazer o relato
dos filmes. A gente só os vê a preto e branco, pelo que temos de acreditar que
os tapetes são vermelhos, e que eles andam sempre em festa. Se o gajo diz...
-
Mas hoje o espectáculo é ao vivo e com as cores todas: elas perfumadas a
cheirar a fruta, saltitam como sardinhas com saltos altos em vez de barbatanas,
frescas e boas.
-
Primo, eu acabei de ver o avião da América, já chegou, eu estive lá.
-
Estiveste?. Ainda bem já viste, não se pensa mais nisso. E do mar gostaste?
-
Não sei explicar. É estranho.
-
Eu ao mar não lhe encontro graça nenhuma, é uma data de água junta que só de
olhar um gajo afoga-se.
-
Não sei.
-
Se já viste isso tudo, num só dia, encosta-te aí e bebe, que já vamos para o
palácio do Jacques, a melhor vivenda deste bairro de reis e rainhas, do pé
descalço.
Já és bom na escrita, mas estás a ficar grande. Arriscas-te a que te eternizem!
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